1.4.17

A porta está aberta

Foi por causa de uma porta. Deixei-a aberta. Espera. Não, foi ao contrário: deixei a porta aberta para que ela pudesse voltar a entrar sem ter de tocar à campainha. Saiu sem chaves. É isso. Discutíramos, como de costume. Já não sei qual foi o pretexto.

Claro que sei. Perfeitamente. Comi os ovos e não esperei por ela, estava a acabar de fazer o  café e eu cheio de fome comi os ovos antes de ela estar sentada à mesa. Começou assim, pela minha sofreguidão junta à falta de educação. Daí passou para a falta de respeito por ela. Era actriz e eu nunca sabia se o crescendo das suas raivas era fingido, auto-ateado ou se vinha do facto de eu não lhes ligar muito. Não ligo muito a nada, na verdade. Gosto de teatro e via-a a subir na fúria, degrau a degrau como se estivesse numa peça. Começava com uma pergunta inocente: "já comeste os ovos?" Depois passava para o degrau acima: "não achas que podias ter esperado por mim?" Não respondo: ela veria o meu gozo - que não é gozo, é indiferença, mas isso ela não concebe, não imagina que tantos e tão profundos sentimentos misturados numa revoada ciclónica (está para vir mas nesta fase já sabemos os dois que vem) me deixem completamente indiferente -. Deixam.

Daqui a pouco estará na cama a ameaçar que se vai matar. Vou para o pé dela, não porque acredite na ameaça mas porque me interessa ver a progressão do turbilhão.  Auto-alimenta-se, como um ciclone. É um circuito fechado.

Lembro-me do café a arrefecer em cima da mesa da cozinha e vou beber um gole. Gosto do café quente, sem açúcar: bebe-se mais devagar. No quarto os gritos aumentam porque saí. Digo-lhe "já vou". "Não preciso que venhas. Não preciso de ti para nada. Não tens respeito nenhum por mim. E ainda menos amor". "Os teus ovos estão a arrefecer e as torradas e o café também", respondo. Tento falar alto mas não gritar. Começa a chorar. As ameaças de suicídio estão quase a chegar. "Vem comer os ovos. Pelo menos morres de barriga cheia". Acabo o meu café e começo a beber o dela. Não me apetece voltar para o quarto. Vai estar à procura dos Valium que um idiota de um médico lhe receitou. Há muito tempo que os tirei da caixa, deixo dois ou três no máximo e vou substituindo os que ela consome. Os outros estão escondidos. "Vou acabar a caixa de Valium". "Acho bem. Toma-os depressa, para ver se adormeces".

Mas ela não tomou os comprimidos. Em vez disso pôs roupa num saco e disse-me "vou-me embora". Fui à frente, para lhe abrir a porta. É a primeira vez que ela faz isto.

Deixei a porta aberta, para ela poder entrar, mas não voltou.

Faz hoje um mês que a porta está aberta.

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