9.1.19

Carta à Mãe

Olha, Mãe, não acreditas o que fiz hoje para o jantar. Adivinha. Sim, isso mesmo. Acertaste à primeira. Fatias  recheadas. Ficaram uma porcaria, horríveis, cada que vez que me lembro das tuas... O que é que ficou mal? Tudo, Mãe, tudo. A começar pela carne, não consigo fazer a carne como tu, tão simples e tão saborosa. Ó Mãe, eu sei que não custa nada. Basta saber, não é? Pois, mas eu não sei. O pão aqui não vale um chavo e isso também não ajuda. Mas olha, Mãe, não me importo. Vou dizer-te a verdade: estou-me nas tintas. Fartei-me de pensar em ti, pensei o tempo todo, lembrei-me dos teus últimos dias no Alentejo, eras uma esponja de morfina, nunca te deves sequer ter apercebido de que eu estava ali. Que sorte? Sim, foi uma sorte poder acompanhar-te até ao fim, estar ao teu lado mesmo não estando tu lá. Estavas tão magra, tão diferente... A única coisa que ficou de ti foi a tua vontade, essa porra dessa vontade... Mãe, porra não é um palavrão... essa vontade, essa força, aguentaste até ao fim, lutaste e ferraste-te à vida, tu que há mais de vinte anos só falavas em morrer. Mãe, deixa lá as fatias recheadas, que se lixem. Lembrei-me praticamente de todas as que me fizeste para aí desde os quinze anos e sobretudo lembrei-me das primeiras que não fizeste, pediste-me desculpa mas tinhas deixado de cozinhar, já a paciência te faltava. Sempre tiveste muita paciência, eu sei; mas tinhas mais força e mais vontade do que paciência, não é, Mãe? Nunca mais hei-de comer fatias recheadas como as que tu fazias mas olha, que se lixe. Pensei em ti o tempo todo de fazer o jantar. Na verdade comecei a pensar antes, foi no caminho de Andratx para aqui, pensei em dizer-te Mãe, o P. tem o mastro no lugar e tu perguntavas-me O que é o P.? pela razão simples de que não reconhecias a existência de nada que te aborrecesse, como naquele dia em que o V. levou a nova namorada pela primeira vez lá a casa e tu por acaso, por simples acaso rearrumaste as fotografias todas para que as da L, a prévia, de quem tu tanto gostavas, ficassem à frente, bem visíveis. E nunca arredaste pé dessa explicação: o acaso. Também foi por acaso que pensei em fatias recheadas, não foi? Claro que sim, Mãe. Qual a  relação entre um mastro no lugar e as tuas fatias recheadas? Provavelmente a tua ironia, aquela ironia que te fazia dizer os piores horrores a quem quer que fosse com o ar mais cândido deste mundo. Morreste finalmente, como tanto dizias querer e como tanto demonstraste não querer, mas quero que saibas isto: quando estou contente, feliz, orgulhoso de mim, como hoje, penso em ti. Quando estou triste e miserável penso em ti e é em ti que penso quando estou de um a caminho do outro ou vice-versa. Não aprendi a fazer fatias recheadas, Mãe, mas contigo aprendi muito mais importante: ser eu,  "Você vai arranjar-me isso, não vai?" Isso era um linguado, o teu peixe favorito e a pergunta foi dirigida ao empregado - tu disseste criado até ao fim - do João Padeiro, em Cascais, que te tinha trazido o peixe inteiro. Você vai arranjar-me isso, não vai? Volta para casa Stop Vamos para Moçambique Stop. Minha querida, esqueci-me de te dizer... As memórias vêm-me em cascata e fico-me por aqui, Mãe. Tu não precisas que te lembre de nada. Falavas muito alto, mas tinhas a mudez mais expressiva do planeta Terra e percebes lindamente a dos outros. Um beijo do teu filho Luís. 

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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.