16.8.20

Da série "Olhar para trás"

Como todos os velhos antes de mim, descubro com horror que deixo um mundo pior do que o que me recebeu. Dupla desilusão: nem sequer sou diferente dos velhos todos que me precederam. 

O totalitarismo - antes confinado ao bloco de Leste e a meia dúzia de países sul-americanos - voltou impante, abrigado sob a capa do "bem", da "correcção política", das "minorias" e da defesa desse pontífice do indefeso que é o "ambiente".

"O desejo, esse cão, ladra-me agora menos à porta" (Eugénio de Andrade, cito de memória) mas tenho pelo menos a sorte de ainda ter objectivos: publicar o resto do blogue, navegar na Patagónia e em Chiloé, ser feliz.  Ou melhor: morrer feliz.

Estou cansado de mais coisas do que pensei um dia viria a estar. Suporto mal a desilusão que este vírus me trouxe numa bandeja: a de que a minha confiança na humanidade foi um equívoco. O pessimismo antropológico que eu insistia em remeter para um canto da ideologia volta à ontologia de onde nunca devia ter saído. Metade de Nietzsche está certa, a outra metade enganou-se redondamente. Deus morreu, sim. Mas não para todos. Agora é fácil de ver porquê: o Diabo não morreu e sem Um o Outro não existe. Enquanto houver Diabo (e diabos) há Deus e deuses. 

A humanidade não sabe ser livre. Precisa de correntes e de gajos que regularmente as quebrem. Não sabe viver sem elas e não pode sobreviver sem eles. A liberdade não é o estado natural do homem. 

Vou passar o que me resta de vida a destrinçar isto do conceito de vanguardas iluminadas, que sempre abominei e abominarei até ao fim dos dias. Não tem nada a ver com iluminações. Talvez seja antes uma fatalidade: sou livre porque não sei não o ser. Por incapacidade, por inabilidade (fatal, como dizia o outro). A liberdade é uma escuridão, mete medo, assusta os inseguros. 

Mas quem diz que ser livre é ser seguro? Eu não. Tive mais do que a minha justa quota de misérias. Se alguma alegria me trouxe a liberdade, é tautológica: a liberdade é um fim em si-mesmo. É uma imposição dessa mistura de genes e acasos de que somos feitos. "Ser livre é poder escolher as suas prisões". Não sei quem disse isto, mas pode parafrasear-se: ser livre é ser escolhido pela maior das prisões.

Chego aos últimos anos da minha vida a lutar pelo que lutava no princípio. Tenho sorte: posso pelo menos confirmar agora que - ao contrário de muitos outros - não estava enganado.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.