8.8.20

Diário de Bordos - Lisboa, 08-08-2020

Aposto que não há diarista no mundo que um dia não tenha escrito «há tanto tempo que não escrevo neste diário...» Não é a primeira vez que isto me acontece e talvez não seja sequer a primeira que o digo: «há tanto tempo arredado deste Diário...»

É preciso dizer a verdade: não é do diário que ando longe. É dos dias. Dias teflon, passam por mim e não ficam; ou eu por eles e não páro. Nem reparo, não vejo, não os vejo. Sei que passo, que mudo de casas, sacos ao ombro e dores pelo corpo todo feito personagem beckettiana (isto é mentira: as dores são apenas na anca direita. São é violentas e inutilizam o resto da carcaça). Percorro as ruas de Lisboa montado na bicicleta - uma das duas formas de não sentir as dores - sonho com Mértola, com uma exposição de fotografia, com o livro a vender-se, com uma caça-fantasmas alemã que na Bavária sonha comigo, com o fim desta interminável fantochada, com o «meu» P. pronto, sonho com dias de paz saudável, bonita, não esta paz podre, como se estivesse separado do tempo por uma placa de vidro: vejo tudo o que se passa mas não lhe posso aceder.

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O meu projecto de conhecer Portugal avançou mais um passo, quilómetro a quilómetro, multa a multa (foi só uma, até ver). Caminha, Viseu - de onde regressei pelas estradas mais pequenas que encontrei, levei quase dez horas a chegar a Lisboa, viagem por um país deserto, as únicas pessoas jovens que vi tinham «Emigrante» escrito na testa em letras garrafais. Ao menos isso, talvez seja por aí que se possa começar a repensar o interior de Portugal, turismo activo, agricultura biológica, retiros espirituais, vá lá saber-se.

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Sacana da carcaça. Só me apetece pontapeá-la com a perna que funciona e de caminho pontapear-me a mim próprio. Um dia um médico disse-me:

- V. deve ter uma grande resistência à dor.

- Não sei - respondi.

- Tem tem.

Continuo agora a conversa, com uma diacronia de vinte ou trinta anos:

- Pois quem me dera não ter! A nenhuma dor, venha ela do casco ou do porão de voláteis, intangíveis, espirituosos, sonhos e similares.

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Continua a experiência em tamanho real com o medo e respectivo aproveitamento pelos poderes que são e que vão desde o ajudante de contínuo ao Primeiro-Ministro. O rebanho deixa-se rebanhear, é encostadinhos uns aos outros que se sentem bem, máscaras nas ventas e «responsabilidade social» arvorada em caminho para o céu (o da modernidade, ça va de soi).

Entre aspas: até nos carros vejo gajos sozinhos de máscara. Duvido muito que a responsabilidade social seja a principal motivação dessa idiotice.

Duvido muito de tudo, verdade seja dita. A começar por mim.

2 comentários:

  1. Não me parece que duvides...Tens sempre muitas certezas.

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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.