1.11.20

Gás que se poupa

Para Roger Vailland era o jogo da cabra-cega. Para Goliarda Sapienza - assim chamada no seguimento da morte de um irmão chamado Goliardo - era a Arte da Alegria. Para Yourcenar, García Márquez, Beckett, Tomasi de Lampedusa, eram outros tantos: a vida está ali, num milhão de páginas da literatura. Ou de música, pintura, escultura, fotografia, cinema, teatro. Não é a arte que é a vida, mas esta que é aquela, plasmada como num ecrã de televisão acendida vinte e quatro horas por dia.

Hoje fui visitar a catedral, onde há alguns anos (pouco menos de vinte?) ouvi as Vésperas de Rachmaninov dirigidas por Michel Corboz. Para quem acaba de passar dois anos em Espanha é uma experiência (eufemismo para «um choque»). Gosto tanto dos templos protestantes, nus até à confrangência como gosto dos excessos das igrejas católicas. Não tem nada a ver com a coerência, coisa que me interessa pouco. Tem a ver com o ser. Com a assumpção do que se é. Não sei bem como explicar isto: prefiro um verdadeiro filho da puta a um falso beato; não me peçam é para definir agora «verdadeiro» e «falso». Não saberia fazê-lo (e se soubesse provavelmente não quereria, mas isso são contas de outro rosário).

É contudo verdade: o que aprecio nas pessoas, nas entidades, nas crenças, superstições, igrejas, orgnizações é a consistência. A envergadura. Ser-se o que se é, seja esse ser complexo ou simples, visível ou invisível. «Sou o que sou e é tudo o que sou», dizia a personagem de uma banda de publicidade de espinafres. Não sei bem o que é «tudo o que sou», mas sei perfeitamente o que é «sou o que sou».

Sou o que fui, sou o que serei: tudo isto sou eu, misturado mil vezes em mil vidas e mil eus, vida a mil vozes, mil vidas e uma voz: a minha. Tudo isto se unifica, tal como a chama se afunila quando sobe. Talvez o tempo seja isso: um funil invertido que nos concentra, destila e liberta, concentrados de nós. Acabamos essência e depois fumo: resta esperar que não haja muito tempo entre um e outro.

Viver aspirando a ser nada, mistura de gás e cinzas que se espalham numa planície, numa falésia, no mar, seja onde for. Rica aspiração, sem ironia e sem duplo sentido: as alternativas são escassas. Se não for essa, a que a substituirá é igualmente fútil, garanto. Antes a que alguém nos predestinou, sempre dá menos trabalho. Gás que se poupa no fim. 

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