25.1.21

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 25-01-2021

Uma cidade sem cafés é como um data de coisas que o zeitgeist me impede de mencionar. Desta vez, aceito a imposição e autocensuro-me. De qualquer forma, nenhuma das analogias que me ocorre é bonita, elegante ou agradável - o que pelo menos significa que estão em consonância com o referente: uma cidade sem cafés nem restaurantes é omissa, feia, deselegante e falta-lhe algo de fundamental. 

Acabadas as reuniões do dia vou buscar a gloriosa Peugeot e passeio-me por esta Palma que não está tão confinada como pensei no sábado e no domingo. Há pessoas na rua - todas mascaradas até aos olhos, claro. Negacionista assumido só conheço o Ivo, que hoje me diz "esta situação é de loucos, e como sou louco estou todo contente". Não está, claro. Ivo é o reparador de bicicletas, um homem doce, apaixonado pelas burras tanto como eu - mais, porque trata delas - e esta é a sua forma de ironizar. O negócio está de rastos, mas ele diz-me que "tem outros valores. O dinheiro não é tudo." O prazer que sinto em revê-lo é mútuo. Depois ando por aí. Penso que pedalar pela cidade é diferente de percorrê-la a pé (e melhor, claro). Pergunto-me porquê, ocorre-me aquele sentimento de chegar a um sítio de barco, tão diferente dos de todas as outras maneiras de chegar, a analogia que me vem à mente tão pouco é aceitável para o homem pudico em que hoje encarnei. Vou ver o Giuseppe, que tem boa grappa, o Xisco do mercado, que me dá um abraço esmaga-costelas e me pergunta "por onde tens andado, meu irmão?" A Babel está fechada, compro dois livros noutra livraria, um Pla e um Amos Oz, venho para bordo, adormeço antes mesmo de ter tempo de os tirar do saco. A chuva continua, irritante, paralizadora, insistente. A Peugeot está à chuva, isso dói-me, parece que sou eu quem se está a molhar. O P. ainda precisa de trabalho e eu de o pôr a trabalhar. Parece que estamos amarrados um ao outro, irmãos siameses que se amam e odeiam mutuamente.

Há bastantes lojas fechadas. Pergunto-me quantas delas reabrirão. Ivo diz-me que a delinquência aumentou imenso. Estamos a voltar à Idade Média...

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