7.5.21

Diário de Bordos - Palma (cidade ferida), Mallorca, Baleares, Espanha, 07-05-2021

O J. C. convidou-me para ir beber um copo com ele. Originariamente, o convite era para nos encontrarmos no café que fica por baixo da sua casa. Ambos nos esquecemos de que é sexta-feira: os cafés, bares e restaurantes fecham às cinco (da tarde, em caso de dúvida). Fomos para casa dele e saí de lá com um livro do Antonio Campos, uma magnífica edição dos Campos de Castilla, que vejo agora está esgotada e ele me ofereceu. Dali fui dar uma volta de burra, parei num kebap para comer uns falafel medíocres, beber vinho que tinha pelo menos a vantagem de estar à boa temperatura e pensar nesta cidade magoada. As ruas cheias de gente e todos os cafés fechados. As pessoas juntam-se nas praças, nas ruas, nas soleiras das portas - em todo o lado, menos onde deviam estar. As esplanadas vão reabrir segunda-feira e todos se regozijam - como se a devolução parcial e injusta de um direito básico fosse motivo de alegria. É: o objectivo é exactamente fazê-las pensar que abrir as esplanadas é uma prova de generosidade e compreensão. Estou enjoado disto tudo, farto, doente. Mandem-me para uma UCI da mente. Comi os falafel «ao postigo» - expressão que a partir de hoje não conseguirei escrever sem aspas, tal o asco que me inspira - bebi o vinho sentado numa mesa - quem não tiver nada que agradecer a um migrante atire a primeira pedra - e voltei para casa. Não é o mundo que me enjoa, é o tempo e nunca pensei dizer isto, ter que dizer isto. 

.........
Palma, cidade fechada, abre-se-me pouco a pouco - pouquíssimo a pouquíssimo:
«Y cuando llegue el día del último viaje,
y esté al partir la nave que nunca ha de tornar,
me encontraréis a bordo ligero de equipaje,
casi desnudo, como los hijos de la mar
(Antonio Machado)

Bebo chá a litro, escuto Maria João Pires - a sua interpretação dos Impromptu de Schubert é uma das provas (admitidamente, não a única) - de que se pode ser possuído por Deus, penso naquele último verso: «quase nu, como os filhos do mar» e pergunto-me por que raio de carga de água o tempo se voltou desta forma contra mim. Nunca lhe fiz mal nenhum, para além de o ignorar, em geral, coisa de que a maioria não se apercebe e uma minúscula minoria agradece.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.