18.5.21

Traição, corpo: um aviso

Se alguém, algum dia, fizer uma escala hierárquica das traições, o mais provável é que o primeiro lugar seja atribuído à traição do corpo. Ser-se atraiçoado por si próprio, pelo que se é aos olhos dos outros, "o Luís? É aquele gajo gordo, de óculos. Não te lembras?" "A Ana? Referes-te à boazona do liceu? Aquela por quem andávamos todos doidos?" É uma traição que se sabe irreparável, irreversível,  viagem longa e sem regresso.

Não posso dizer que tenha tratado bem o meu corpo. Mas tão pouco o tratei mal: nunca pus os pés num ginásio, por exemplo (com a possível excepção de um que tinha de atravessar para ir ao duche, em Antigua). Dei-lhe quantidades apreciáveis de álcool a beber - às vezes mau, outras do bom e do melhor. Alimentei-o correctamente: carne, peixe, gorduras animais, picantes, hidratos de carbono. Nunca fui de comidas «saudáveis» (aspas porque cito), excepto na Venezuela e mesmo aí era de fruta que me alimentava. Nunca alinhei muito em verduras - excepto a ratatouille da S., de que guardo ternas memórias. Nunca fiz desporto, com excepção de alguns anos de regatas. O corpo sempre agradeceu e me tratou bem. Salvou-me várias vezes de uma morte certa (não exagero. Foram muitas). 

Apesar disto, desata-se em achaques. Esta dor na anca - que agora sei não ser nem ciática nem artrose, ao menos isso - corrói-me tudo. Vai levar tempo a tratar, disse-me o osteopata, por ser antiga. Disso, o meu corpo pode queixar-se: nunca lhe liguei às maleitas. Não sou hipocondríaco, digamos.

Mas não deixa de ser uma traição. Até agora, aceitou o meu desleixo com bravura e sem demasiadas queixas. Isto de não me deixar estar de pé mais de dez minutos é inaceitável. Mereceria o pelotão de fuzilamento, se não me levasse com ele.

Vou tratá-lo, claro. Mas algo me diz que a seguir a esta outras virão. E de uma coisa pode o senhor meu corpo estar seguro: não vou eu deixar de viver para viver ele. Estamos juntos vai para sessenta e quatro anos e para onde vai um, vai o outro.

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