14.4.23

O velho que escrevia cartas (a si próprio)

O homem escrevia cartas a si próprio, de tão só. Aplicava-se meticulosamente, com a língua ligeiramente mordida num canto da boca, caneta de tinta permanente já velhinha, mata-borrão no lado direito da escrivaninha, dicionário à esquerda. Detestava dar erros e não era adepto dos dicionários publicados na Internet. Contava-se tudo, o dia todo desde manhã à noite, incluindo as intermináveis insónias. Enfim, não tudo: não mencionava as idas à casa de banho, por exemplo; omitia igualmente os pensamentos concupiscentes que regularmente o assaltavam - e respectivas consequências -, o nome da mulher por quem estava apaixonado, se houvesse uma. Nem sempre era o caso. Todos os dias de manhã, logo a seguir ao pequeno-almoço, ia ao correio, comprava um selo e punha a carta da véspera no marco. Quando a recebia deixava-a fechada durante um ano. Só a abria na data do carimbo. Era fácil porque as tinha arrumadas por ordem de chegada. De vez em quando faltava uma: ou chegavam fora de ordem, ou as de sábado e domingo chegavam tarde, porque nem todos os fins-de-semana tinha paciência ou saúde para ir a estação de correios do aeroporto,  a única que permanecia aberta aos sábados e domingos. Os funcionários dos correios já o conheciam e sabiam que o destinatário das cartas era ele.

António - é este o nome por que o autor designa as personagens masculinas a quem não sabe que outro nome dar - não tem pretensões literárias. Limita-se a escrever factualmente: "hoje o meu dia começou com cereais, como quase todos ". "A senhora dos correios olhou para mim com um olhar que me pareceu de comiseração, mas não tenho a certeza se era ou não". "A seguir ao correio fui ao jardim olhar para o chafariz. A câmara reparou-o, finalmente. Não choveu, ao contrário da previsão. Saí com a gabardina beige e o chapéu castanho, o que aguenta melhor a água. Precauções inúteis: não caiu uma gota." "Para o almoço fiz frango com natas, o prato favorito da A. M. Depois fui dormir a sesta." Dias factuais, por assim dizer. Nada de «sonhos», entre aspas para mostrar o desprezo que os votava. Nada de divagações metafísicas sobre o sentido da vida, da morte ou do bife com batatas fritas que de vez em quando se oferecia, acompanhado por um bom tinto do Tua. Tão pouco expunha a si próprio as «opiniões», mas isso é porque não as tinha sobre quase nada. António pensava que só se deve formular uma opinião - um julgamento, que é a mesma coisa - sobre matérias que se conhecem bem.Como considerava que não sabia nada de quase tudo e pouco do resto, abstinha-se. De as exprimir, quero dizer. Fazê-las, fazia: tentativas de opinião, degraus de uma escada que sabia longa, escada sinuosa e ziguezagueante. As ideias, opiniões, «julgamentos» eram provisórios, sujeitos a retornos e mudanças de direcção, consoante a evolução dos seus conhecimentos. A certeza é uma padrão óptimo para medir a ignorância: quanto mais de uma, mais da outra.

Por isso as suas cartas eram factuais, descritivas: «hoje comi um ovo estrelado. Fi-lo como gosto quando tenho tempo, separando a clara da gema.»   

António tem setenta anos, vive de um pequeno pecúlio que foi juntando ao longo da sua vida, enquanto trabalhava como maquinista de comboios. Já teve um cão, mas agora vive sozinho. Não quer contactos nenhuns com o governo - excepto na área da saúde. Continua a usar o serviço público porque, diz, «é a única área da minha relação com o Estado em que fico a ganhar. Ao fim de uma vida de perdas, não faz mal a balança inclinar-se para o meu lado, por pouco que seja.»

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Aldeia do Frados, 10/10/1995

«Caro António, 

Hoje tive ecos longínquos da B. e suas grilas histéricas. Parece-me tão longe, tudo isso. É como aqueles filmes que vimos há muito tempo, de que recordamos o título e alguns dos actores, o tema geral e mais nada. Como Providence ou Dersou Ouzala, lembras-te?» 

António começou a dirigir-se a si próprio, a nomear-se como se escrevesse a um amigo. Não o fez com propósito ou vontade explícita. Apareceu, simplesmente. Aliás, sentia que ao contrário de toda a gente que lia, ouvia ou via a maioria das coisas que lhe aconteciam eram fruto de uma falta de vontade mais do que do excesso dela.


 (Cont.)

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