4.11.23

Morte e ressurreição

Ontem morri e quando cheguei ao céu - sou daqueles que vão directamente para o Paraíso, não preciso sequer de passar pelo purgatório - Deus disse-me:
- Desculpa. Estou desolado. Houve uma avaria informática e não consigo abrir-te os portões. Tens de voltar à Terra e quando eu tiver isto reparado chamo-te outra vez. Em troca, para te compensar da maçada, devolvo-te à vida. Vais é acordar no meio do velório, mas espero que não te importes.
- Não me importo nada, meu Deus. Aliás até vou gostar de ver algumas caras. Só espero que a avaria demore pouco tempo a ser reparada, porque estou um bocado farto daquilo lá em baixo.

Ressuscitar em plena igreja de S. Domingos de Rana a meio da tarde, cheia de gente, foi esplêndido. Quem falava era o T., o que é compreensível: é o meu mais antigo amigo. Estava a falar do meu complexo de S. Bernardo, da minha dificuldade em não desrespeitar «a minha palavra», dos problemas todos em que isso me tinha metido, da minha impulsividade. Sei lá, um ror de coisas. Sei que fiquei ali a ouvi-lo imóvel, olhos fechados, mãos cruzadas na barriga. Só me manifestei quando ele acabou: sentei-me e comecei a bater palmas.
- Obrigado, T.! - Sempre falei muito alto (deve ser por isso que fiquei surdo muito cedo) mas desta vez gritei. - Obrigado, T.! 

Ou seja: ao contrário do que sempre pensei, esta diabólica tríade era conhecida de todos. Sempre foi assim. Começava com um impulso, alegremente livre de qualquer forma de análise; continuava com o s. Bernardo, barrilinho ao pescoço, sempre pronto a ajudar alguém; e acabava comigo a aperceber-me da merda aonde estava mas a dizer-me «não podes voltar atrás. Fulano conta contigo.» Era mais ou menos disto que o T. falava e eu ouvi e aplaudi e só me apercebi do clamor da igreja ao fim de um bom bocado. A igreja quase vinha abaixo - esta é outra das características que o T. mencionou: ponham-me um elefante no meio da sala a dançar sapateado e eu não o vejo até o bicho reclamar com a minha indiferença. Tomá-la-ia, se isto acontecesse, por má educação. Não é nada, elefante. É mesmo só distracção.

De maneira voltei à vida, agora sabendo que de um momento para o outro poderia ser chamado lá acima. Infelizmente perdi a vontade toda de regressar. Vista depois da morte, depois de ver a agitação na igreja, as manifestações de alegria (e algumas de aborrecimento, verdade seja dita) a vida pareceu-me muito mais apetecível. Apesar de do paraíso só ter visto os portões, de do clamor na igreja - houve gente que fugiu pensando que eu era um fantasma! - só me ter apercebido ao fim de uns bons segundos (estava a pensar no discurso do T. e a bater palmas, não conseguia ver mais nada), apesar de me lembrar perfeitamente do alívio que senti quando morri (ao contrário do que é costume não vi um filme da minha vida. Só vi o filme das embrulhadas que deixava para trás), apesar de estar chateado com a carcaça (a justo título), apesar disso tudo fiquei contente por voltar à vida.

Claro que regressei cheio de boas intenções, facilitadas pela certeza de que não tardaria nada estaria de novo à frente do portão. A partir de agora pensaria mais em mim, a partir de agora pensaria mais, tout court, a partir de agora reconheceria que as circunstâncias nos podem forçar a mudar o que dissemos. Ou pelo menos a incluir em todos os compromissos a expressão «se tudo estiver como agora». A vida tornou-se-me bastante agradável, a avaria no portão nunca mais era reparada e comecei a pensar que o velho barbudo se tinha esquecido de mim.

Não esquecera nada. Perdi foi o direito de ir para o céu mas o inferno estava sobrelotado e o sacana do Diabo não cedia aos pedidos de Deus para me arranjar um lugar rapidamente.

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