20.1.24

Diário de Bordos - Z'Abricots, Martinique, DOM-TOM França, 20-01-2024 / II

Jantado mereceria aspas: «jantado». Passei a maior parte do dia deitado e ao fim da tarde resolvi sair, não fosse começar a vomitar o pobre S. D. que culpa tem nenhuma. Fui ao Impératrice beber um ti'punch («um» é uma litote), comprei mostarda e pão e vim para bordo fazer hot dogs, uma forma de jantar que aprecio particularmente, sobretudo se for acompanhada por um planteur maison. Oiço Dollar Brand (African Marketplace, um dos seus discos que prefiro) e penso que relatados assim os meus dias não têm o mais pequeno interesse seja para quem for. Isto dos diários é uma mistura muito grande: há coisas das quais não me apetece falar porque nem a mim interessam, outras das quais não quero porque valorizo o pudor e finalmente acabo por falar apenas daquilo que em mim há dos outros, ou coisa que o valha. De maneira, aqui vai, meus caros: o Impératrice é adorável apesar - ou por causa - do seu serviço, que só não é abominável porque é cómico, como de resto o do Cayali e o da maioria dos lugares da terra. Estes dois têm pelo menos a vantagem de ser lindos e talvez seja isso que puxa a comicidade, vá lá saber-se. O Dollar Brand é outra história. Um dos raros concertos a que assisti foi dele, em Genebra, com o Carlos Ward no trompete, uma espécie de deus mudo, impassível, maravilhoso. 

Bebo café de novo aos litros, coisa que o bom senso desaconselha porque é um diurético. Vá lá, pelo menos consegui reduzir o consumo de água e o de cerveja, que é uma espécie de água com gaz e com cor, coisa que a outra não tem. Ou seja, neste momento o mix é: rum HSE ambré, café e Dollar Brand. Daqui a pouco um cigarro - comprei um maço, juntamente com a mostarda e com o pão -. Se isto não é uma mistura apaixonante não sei o que é. Amanhã é domingo, dia que só não é pior do que o sábado porque se lhe segue a segunda-feira e posso trabalhar e ir ao médico se for preciso. Espero que não, apesar de a senhora ser linda de morrer, o que não estraga nada, muito antes pelo contrário. No outro dia disse-me que devia evitar erecções durante três semanas e pensei imediatamente «Isso é fácil. Bastar-me-á não me lembrar de si» mas calei-me. Às vezes acontece saber calar-me. Sobretudo se o outro lado vier a ter um bisturi nas mãos. Ando completamente desregulado com os comprimidos para a diabetes mas como o coiso tem andado baixo deixo andar. Uma das grandes qualidades do rum é que não me aumenta a taxa de coiso no coiso. Deve ter a ver com a homeopatia, como aqui disse recentemente. Matar o mal pelo mal. Melhor: ressuscitar o bem com o bom. 

Uma coisa de que ninguém pode acusar-me é de maltratar a carcaça, que é uma mal-agradecida de todo o tamanho.

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De Dollar Brand passo a Jimmy Dludlu, um senhor que aconselho a todos os que gostarem de «afro-jazz» (aspas porque não sei se tal coisa existe). Isto da desmaterialização tem vantagens, por muito que lhe queira resistir. E já que estamos assim, a seguir virá o Wazimbo. Falta-me tanto, isto. Faltam-me tantas coisas, «isto» sendo todas as que vivi. Não tarda começo a pedir um prolongamento, vão ver. Eu, que sempre aspirei a morrer cedo. Não sei se foram os netos se as memórias que me estragaram os planos.

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Penso muitas vezes num poema de Reinaldo Ferreira chamado A que morreu às portas de Madrid. É assim:

A que morreu às portas de Madrid,
Com uma praga na boca
E a espingarda na mão,
Teve a sorte que quis,
Teve o fim que escolheu.
Nunca, passiva e aterrada, ela rezou.
E antes de flor, foi, como tantas, pomo.
Ninguém a virgindade lhe roubou
Depois de um saque - antes a deu
A quem lha desejou,
Na lama dum reduto,
Sem náusea mas sem cio,
Sob a manta comum,
A pretexto do frio.
Não quis na retaguarda aligeirar,
Entre «champagne», aos generais senis,
As horas de lazer.
Não quis, activa e boa, tricotar
Agasalhos pueris,
No sossego dum lar.
Não sonhou minorar,
Num heroísmo branco,
De bicho de hospital,
A aflição dos aflitos.

Uma noite, às portas de Madrid,
Com uma praga na boca
E a espingarda na mão,
À hora tal, atacou e morreu.

Teve a sorte que quis.
Teve o fim que escolheu.

Não há maior felicidade do que ter a sorte que se quis, a morte que se escolheu. Por muito cara que essa sorte seja e muito ansiada a morte.

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