9.1.24

Resumo do segundo capítulo, tendo o primeiro como antecedente, não vá ele perder-se (o capítulo)

Resumo do primeiro capítulo: o nosso herói reflecte sobre o ponto aonde se encontra na vida e tudo o que o levou ali. Reflexão curta, apresso-me a esclarecer o leitor não vá este pousar o livro na estante e desatar a correr pela livraria gritando silenciosamente "Socorro!" Ou, pior ainda, quem se escapa do livro é o herói, feito personagem de uma rosa qualquer do Cairo. Nenhuma destas hipóteses agrada ao autor, que apesar de não fazer a mais pequena ideia do ponto em que ia pôr a personagem principal do livro a queria nele (isto é, no livro) e também muito gostaria de ter um leitor, um que fosse, a conversar com ela (a personagem principal) e não cada um a correr para seu lado, coitada da livreira, uma rapariga bonita dos seus quarenta anos que quer tudo menos confusão; disso já ela tem que chegue em casa com um marido que só não lhe bate porque ela é especialista em krav-maga ou lá como se chama a arte marcial dos israelitas. De maneira sugiro veementemente ao autor que faça curta a reflexão do herói; que está agora num ponto qualquer da sua vida mas não sabe bem qual. Os pontos da vida têm nomes como as paragens de autocarros ou as estações dos comboios - infância, adolescência, idade adulta, etc. - mas estão muito longe uns dos outros. Devia haver paragens intermédias e o caminho entre elas devia ter mais árvores para que um herói desorientado se possa sentar à sombra, proteger da chuva ou fazer xixi. 

O herói não é marinheiro mas visualiza o caos como se este fosse um conjunto de ventos. Quando tem a vida ordenada - isto é, naqueles breves momentos em que o comboio de tempestades pára para meter água ou combustível - o vento é só um e chega-lhe da alheta; depois o tal comboio ganha movimento outra vez e os ventos vêm de todas as direcções. "Vá lá que o que tenho de frente é fraquinho" diz o herói que não é marinheiro. Não se sabe bem a quem fala. À livreira lutadora? Ao leitor assustado? "Que raio de trio foi este palerma arranjar", diz o leitor antes de fechar o livro e sair calmamente com ele debaixo do sobretudo. Mas a livreira viu-o e com dois pontapés e um murro pô-lo no chão. A cena compõe-se. Pode facilmente imaginar-se a continuação. A livreira diz-lhe "cada pontapé dos meus vale trinta euros e cada murro vinte. O senhor deve-me oitenta euros da pancada e vinte do livro". "Mas o livro só custa dezoito e noventa", responde o homem titubeante. "Pois, mas eu não tenho troco. Se quiseres dou-te uma chapadinha a um e dez, para não te sentires lesado". "Não, obrigado. Posso pagar com o cartão?" "E o rabinho untado com água de rosas, não?"

A livreira é bonita, tem um corpo harmonioso e óculos que a fazem parecer uma bibliotecária. O leitor está por terra, ainda. A seu tempo levantar-se-á, irá ao multibanco que fica ao lado da livraria, levantará os cem euros, despedir-se-á da senhora - Nelita, fica aqui baptizada - e ir-se-á embora a jurar que nunca mais na vida roubará um livro deste autor ou com esta personagem. 

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Nela apercebe-se de que ficou com o livro e decide ver se encontra o inábil ladrão de livros.

Não teria a mais pequena hipótese de o encontrar se, a pensar nas necessidades da narrativa, o leitor não tivesse deixado cair um pacote com cartões de visita.  Chama-se Jaime Queredo e mora a caminho de Setúbal. A personagem principal regozija-se. Gosta de Setúbal e assim pode convidar a livreira para uma caldeirada na tasca da Tia Rosa, que bem boas as faz. O autor lembra-se de que ainda não deu um nome à personagem mas agora não lhe apetece pensar nisso. O importante é reencontrar a tasca e ter a certeza de que está aberta.

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Resumo do segundo capítulo:

A tia Rosa está aberta. Jaime Queredo, leitor inábil sabe aonde fica o restaurante e aceita - hesitantemente, de passagem seja dito - encontrar Nela e receber o livro que tão duramente pagou. Ou seja: neste momento estão na já mencionada tasca o leitor, Nela, a personagem principal e o autor. Nela está furiosa. Entrega o livro ao homem e diz-lhe:
- Tome lá o livro e desapareça da minha vista. E veja lá se aprende a roubar livros, seu traste. - Isto para o tal Jaime. Para o autor:
- Por que raio de carga de água me fizeste esperar tanto tempo para te encontrar? - Para a personagem principal:
- Desapareça você também. Tenho de ter uma conversa muito séria com este homem. 
- Desculpe, minha senhora. Não posso desaparecer assim. Sou a personagem principal deste livro.
- Ó homem, ponha-se daqui para fora e já.

Ficamos assim a saber que a personagem principal do livro é um homem capaz de enfrentar o mau humor de uma campeã de krav-maga mas conhece os seus limites. Ainda não lhe sabemos o nome e de momento continuamos a história sem isso. O importante agora é o mau humor de Nela. Porque está zangada?

Já aqui a descrevi: parece uma bibliotecária, o que sendo funcionária de uma livraria faz sentido. Quando não está zangada é uma doçura de mulher, passem-me por favor o cliché. É culta, sensual e tem um sentido de humor devastador. Isso, porém, fica para depois. Educa sozinha dois filhos, apesar de partilhar bastantes tarefas com os respectivos pais. Um chama-se Eduardo e é guarda-livros num banco. Do outro não revela pormenores. Diz apenas que é um gajo que está sem estar, um gajo - insiste na palavra gajo - que consegue conciliar a ausência e a presença, como os aviadores e os maquinistas de comboios.
- Ou os marinheiros - arrisca o autor.
- Esses não. Nunca estão.
- Ou os escritores?
- Ainda pior. Estão sem estar. Parecem fantasmas. 
- Você hoje está amarga - arrisca o autor. Agora que estão sozinhos, a caldeirada da Tia Rosa chegou e o moscatel foi substituído por uma garrafa de vinho branco a conversa flui um bocadinho para fora das margens.
- Amarga? Eu? Já me provou? Ou melhor: já me provaste? Farta de te tratar por você. - (Até ali a conversa tinha oscilado entre o tu e o você, mas pouco importa.)
- Concordo. Estávamos a falar dos teus dois filhos, não é?
- E tu, tens filhos?

O autor aprenderá à sua custa que falar com Nelita é um duelo e não tem nada daquilo a que Marguerite Yourcenar chamava «construir um muro, em que cada um acrescenta um tijolo».

- Essa fufa genial... É um dos meus escritores favoritos, sabias? Ainda antes do Adriano. Comecei com o Alexis, continuei com a Oeuvre au Noir e só depois cheguei às Memórias. Não a posso ouvir, mas tão pouco posso não a ler. 
- Escritores?
- Fizeste-me esperar uma eternidade. Isso não se faz.
- Posso dizer o mesmo, não posso?
- Podes. Deves. - A zanga passou-lhe, efeito sem dúvida do vinho branco. Põe a mão no joelho do autor e diz-lhe:
- Já li livros teus, sabias? - O tom mudou radicalmente. - Já te conheço, mesmo antes de te conhecer.
- Uma coisa é o que eu sou, outra o que escrevo. - O autor está nitidamente numa atitude defensiva. Tenta afastar discretamente a mão de Nela do joelho mas ela agarra-se-lhe. 
- Fizeste-me esperar. Agora tenho de decidir se te perdoo ou não.

É do conhecimento geral que se uma mulher diz isto é porque já perdoou.

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