22.8.24

Esquartejamento

É o dia que escorrega em ti ou tu que nele deslizas? O calor que dia a dia baixa imperceptivelmente, décimo de grau aqui, outro ali? "Era depois da morte ou era antes da morte?" pergunta Ruy Belo e eu respondo "Claramente antes" apesar de não ter a certeza. A morte e a vida confundem-se tanto, não é? Pelo menos na vontade, que no dia a dia não sei, estão mais separadas, mais identificadas. "Isto é  vida." "Isto é morte." 

Falta porém o assim-assim. "Isto não é vida nem é morte." Será qualquer coisa de intermédio? Tédio, como dizia o outro? Uma ponte, daqui para lado nenhum? Uma ponte sem pilares?

Vamos fazer um cálculo: peso oitenta e cinco quilos. O rum está a dois metros. A tampa do frigorífico pesa dois quilos, talvez menos [confirmar]. Quantos quilojoules de energia gasto para ir buscar um copo de rum? Vale a pena gastar essa energia toda?

"Terei eu casa onde reter tudo isto
Ou serei sempre somente esta instabilidade?" pergunta Ruy Belo, outra vez ele - não é de estranhar, o livro é o mesmo, às vezes escrevo e leio ao mesmo tempo, há que ir às fontes - e acabei por tratar das alpergatas em vez de me servir um copo de rum. Subtraio quilowatts ou adiciono-os? O Ruy Belo não diz nada a respeito de rum e alpergatas e eu só vejo uma ligação muito ténue entre eles: mover oitenta e cinco quilos, imagine-se o peso que eu já perdi. Resultado: ler e escrever ao mesmo tempo emagrece.

"Conheço as palavras pelo dorso. Outro, no meu lugar, diria que sou um domador de palavras. Mas só eu - eu e os meus irmãos  - sei em que medida sou eu que sou domado por elas. A iniciativa pertence-lhes. São elas que conduzem o meu trenó sem chicote, sem rédeas nem caminho determinado antes da grande aventura."

Ruy Belo, outra vez. In Homem de Palavra(s).

São quatro da tarde. Daqui a pouco o valor atinge o seu pico. Eu disperso-me: é preciso pintar o poço e acabar o leme, escolher letras, medir armários,  acabar o lazybag. Fazer a inspecção para o registo. Um barco é uma mulher: tem memória, vocabulário e rum no frigorífico. 

Na Idade Média havia uma tortura que consistia em puxar cada um dos membros em direcções opostas. Chamava-se esquartejamento. Era feita com cavalos ou com máquinas. 

Dispenso os cavalos e as máquinas. Sou esquartejado todos os dias. 

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