24.1.05

Diário

Naquele dia, antes de ir para casa, comprou um bonsaï. Gostava de ver aquelas arvores minúsculas, torturadas, atadas, cortadas, moldadas por forças que desconheciam, sobreviver - tantas vezes - a quem lhes fazia aquilo tudo.

Depois comprou uma garrafa de whisky, um CD e uma tesoura para moldar o bonsaï à sua maneira. Começou por lhe cortar os ramos baixos - "nada de diversões antes de atingirmos o objectivo", disse-lhe enquanto cortava os ramos inferiores, já demasiado espessos. Aplicou-se metodicamente à tarefa.

Depois pensou nela - que falta que lhe faziam as diversões, e os objectivos. Pensou nela metodicamente, como tudo o que fazia: começou pelos pés, subiu até ao ventre (onde se atardou um pouco; pensou que começava por baixo, sempre). Olhou em volta: dois barcos, um cabide barato e um estore japonês - não é muito, para quem tem as tuas aspirações. Felizmente, na secretária, o bonsaï trazia-lhe a terra, a força, a persistência. "Vou chamar-lhe Winston", pensou, antes de cair no sono, ou da varanda.

Acordou no dia seguinte, meio morto, num jardim. Lembrou-se que ela partiria hoje para Creta. Ainda correu, mas diversas queimaduras, e um estado geral de entorpecimento, impediram-no de a encontrar.

Nunca mais a viu, se bem que se lembre perfeitamente dos seus óculos, dos seus olhos, do seu nariz e dos seios, que mal tinha aflorado. Era americana, filha, irmã, ou futura mãe de um Winston. Não lhe tinha visto os pés, as coxas, a púbis - só as mãos, a face, os cabelos castanhos claros que lhe ocultavam o olho direito em diagonal, e que, abundantes, prometiam a sensualidade que só os cabelos compridos sabem ter. Começara por cima, desta vez, e as coisas deram erradas.

Não é contudo nela que pensa quando baptiza e corta o bonsaï. É em ti, na persistência do teu sorriso, na interminável extensão do teu ventre, no inescrutável enigma do teu sorriso, na inexplicável atracção que por mim sentes.

"Qué vaya, mano. Um bonsaï não é um vulcão, coño. Diz-lhe adeus, parte, vai-te antes que comecem a descobrir que não és mais do que uma pequena e desajeitada coisa, rodeada de mar, de mastros, de rumos desconhecidos, de bonsaïs trocistas. Não és feito para isto. Vai dormir. Vai calar-te."

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