31.1.25

Imperfeito, quase perfeito, mais-que-perfeito

Rédea solta à minha histórica ansiedade, que me agradece impedindo-me de dormir. Consolo-me pensando em francês, língua cuja beleza me embala. (Jogo de palavras válido nos dois idiomas, apresso-me a esclarecer.) É uma beleza feminina, cheia de curvas, circunvalações e apetites escondidos sob uma aparência austera. Penso nos tempos verbais, na circularidade do tempo, na sua imutabilidade, por assim dizer. Nas palavras que me preenchem as sinapses. Agradeço à natureza serem tão poucas (as sinapses. Palavras são muitas, demasiadas). Uma vez expulsas (as palavras) é possível que o sono ocupe os espaços por elas deixados livres, como nas histórias de marionetas em que o polícia e o pobre se alternam.

Sentimentos, emoções e outros caos

A expressão caos circular é um oxímoro: o caos não tem forma e muito menos circular. Talvez pudesse ser substituida por confusão, turbilhão, ciclone (o que faria reaparecer esta noção de círculo). Espiral (descendente,  claro)? Demasiado ordenado. Pântano? Demasiado imóvel. Rio de lama, talvez. Manada de cavalos loucos.

Sono

A ideia de que se escorrega para o sono,  ou que este chega de mansinho é atraente mas enganadora.

O sono é um muro que se constrói pedra a pedra e que um coice ou um silêncio podem destruir.

30.1.25

Parar, perder?

Parar o tempo? Ideia tola. Melhor é e muito acelerá-lo. Estes fins de vida que se eternizam são como um filme que não acaba de acabar, como aquelas cerimónias oficiais de que só esperamos o momento do jantar e ele nunca mais chega.

Não a perder tempo, sim a perder-me no tempo. 

Não a parar o tempo, sim a parar-me no tempo. Para sempre.

28.1.25

Salvo raras excepções

O que gela descongela, o que sobe desce, as vagas vêm e vão e aonde agora está a crista estava a cava há pouco. Já Janeiro foi e Fevereiro, o mês mais curto, espreita e traz Março,  o misericordioso, pela mão. O que flui reflui, o que foi será. 

Nada é.

Porque sim, como eu

É porém forçoso reconhecer que F. nunca desenvolveu uma visão coerente do mundo. Para ele, a realidade era um caleidoscópio com metade dos espelhos partidos e a outra metade fora do lugar. Impossível extrair dali qualquer espécie de sentido, por mais que girasse o engenho. F. não encaixa na visão ordenada de quem acredita que o mundo tem uma ordem e menos ainda na de quem não acredita em caleidoscópios, funcionem correctamente ou não. Múltiplos eixos de simetria ou ausência total deles. Nos seus piores dias, F. via-se ele próprio como o eixo de simetria, torto, aos èsses, que ao girar criava formas aleatórias da realidade. Com essas formas construía alegorias, frágeis edifícios que raras pessoas viam e nos quais muito menos acreditavam. Nos seus dias bons,  escassos, não se dava sequer ao trabalho de se ver a si próprio. Os espelhos internos e os externos obscureciam-se e proporcionavam-lhe os poucos momentos de felicidade que ao longo da sua vida ia conhecendo. Foi a partir desses momentos fragmentados que a analogia do caleidoscópio quebrado lhe ocorreu. Por vezes interrogava-se sobre a origem da luz que lhe permitia ver as míriades de pequenas imagens desconexas que formavam os seus mundos, diferentes todos uns dos outros pois variavam com as inúmeras disposições dos fragmentos de espelhos no interior do tubo. F. não acreditava que essa luz tivesse uma origem. "Existe porque sim", dizia. 

"Como eu, de resto, que vejo os mundos que faço e faço os que vejo."

26.1.25

Regras, excepções e excepções à regra

O homem é demasiado complexo para ser avaliado ou julgado através da luz de um só prisma. Todos somos excepções e se é verdade que não há excepção sem regra, essa regra é feita das excepções. Todos e cada um de nós somos uma regra de um, uma excepção de milhões. Não há racista que não tenha um amigo preto porque esse amigo é a excepção, é diferente dos outros pretos; tal como não há anti-racista que não embirre com um grupo qualquer em particular. Como todos, sou uma raça de um e tanto os meus amores como os meus desgostos são compostos por grupos compostos por uma pessoa - múltipla, ela também, em parte amável e noutra detestável como qualquer outro. 

Isto não é uma apologia do relativismo. O mal existe, tal como o bem. O homem que drogava a mulher para a vender a outros homens, a mãe que matou a filha à fome, o norueguês que matou dezenas de jovens numa ilha são excepções, não são a regra. 

Não há excepções sem regra.

Sentimentos, tentações

Falar de sentimentos sem cair no sentimentalismo é como tentar seduzir uma mulher bonita: tem de se resistir  à tentação de lhe dizer que o é. Isso já ela sabe. 

25.1.25

Saudades ab ante

Deixo Lisboa sem grande pena, provavelmente pela primeira vez numa longa vida de partidas da cidade que sempre acreditei ser a única. Neste caldeirão de sentimentos a saudade não é ingrediente imprescindível. Pelo menos a antecipada. Logo se verá quando chegar o tempo da outra, a verdadeira, a da Bayer.

Palavras, tu. Ou: o vazio

Verdade seja dita: se não te escrevesse a quem escreveria? Que faria das palavras? Andariam por aí feitas tontas,  sem direcção, sem norte nem oriente, às voltas. Ainda me tomavam por alvo, esburacavam-me a carapaça, às voltas sim mas dentro de mim, que essas coisas são como a natureza, têm horror ao vazio e mal apercebem um, ténue que seja tratam logo de o encher, as malvadas, malandras, patifes, vadias, vagabundas.

Sem ti, que contigo parecem as renas do Pai Natal a puxar o trenó dos sentimentos. E sabem muito bem para aonde vão. 

23.1.25

Tijolo a tijolo

"Que te disse o dia?", perguntas. E a resposta é: "Nada que a noite não tenha já contado." "Que te conta a noite?"

A noite não conta nada, meu caro. Limita-se a ser e a ser vista como é: ringue, arena, palco... O que quiseres, o que dela fizeres, o que nela vires. Ou que em ti ela vê, mais verosivilmente: um tipo que pacientemente, degrau a degrau, tijolo a tijolo constrói o dia.

22.1.25

Desportivismo é isto

Uma bola num jogo de flipper avariado, jogado por um tipo com paralisia cerebral e mesmo assim a tentar controlar a trajectória e somar pontos.

21.1.25

Objectivo

Aprender a separar a espuma dos dias.

Exorcismo

T'esconjuro! T'esconjuro! T'esconjuro! 

Para funcionar é preciso dizer três vezes, vir a Cascais comer frango assado no Jardim dos Frangos, dar três voltas à Lua a pé-coxinho, espalhar pimenta preta fumada nos pelos de um gato branco, olhar o demónio nos olhos, ir jantar ao restaurante A Colina e recomeçar: t'esconjuro! T'esconjuro! T'esconjuro!

Insistir até que funcione. Funciona sempre, em insistindo o suficiente. 

Uma fonte e dois cemitérios

Procuro um número de telefone usando apenas uma parte do nome e aparecem-me todos os números que têm alguma coisa em comum com o que eu procuro. Camadas geológicas, linhas de tempo, muitas das quais já sedimentadas no cemitério da memória. Não as apago: às vezes, esse cemitério tem o nome de Felicidade. Nem sempre. Também me aparecem números enterrados no cemitério das Dores. 

Não os apago: todos eles têm um tronco comum, vêm da mesma fonte.

Catedral do sono

Encolho-me para entrar em ti, noite. Como se rezasse. Como se me ajoelhasse. E tu, bondosa, recebes a minha prece.

Certeza e afins. Ou: micro-apologia da dúvida

A certeza é uma fé. Ateísmo é sinónimo de dúvida. Só quem acredita pode ter certezas.

Porém, não acreditar na existência de Deus é diferente de não acreditar em nada. O relativismo não passa de um filho bastardo do cepticismo porque para este há certezas, mas são provisórias. E há graus: "aquilo em que eu acredito é melhor do que aquilo em que tu acreditas, porque se fosse pior eu não acreditaria". E há tolerância: "Porém, o teu direito de acreditares no que acreditas é igual ao meu". Para a fé, a verdade é eterna, por definição. E única. "A minha fé é melhor do que a tua e tens todo o interesse em converter-te porque se não o fizeres ou morres ou eu te mato, o que vem a dar no mesmo, se reflectires". Ninguém mata em nome da dúvida.

Duvido, logo existo.

Só a morte sabe o que é a certeza.

Viver é construir castelos com dúvidas, como se fossem Legos e igualmente indestrutíveis.

(E onde pões o amor, neste oceano de dúvida?)

19.1.25

Gentilmente

Entras gentilmente pela noite e sai-te pelos poros o dia,  como se os cobertores te espremessem a alma, essa parte incógnita, escondida e confusa de ti. Vês o dia sair, volutas do fumo de um cigarro e igualmente aquecidas. Pensas no dia espremido como um limão, "até que as sementes se partam". Não tens sementes. Há muito que deixaste de acreditar em tudo o que esteja a mais de cinco segundos de ti. Deixaste de acreditar nas pessoas. Só acreditas nos sentimentos que a elas te ligam: a amizade, o amor, a indiferença, o mais vasto dos sentimentos. O resto vai para o caixote de lixo do tempo, semelhante ao da História mas mais pequeno porque é teu, só teu.  Aprendes a diferenciar as palavras do que as subtende, do que as sustenta. Palavras não são senão sons,  ar em movimento. Acreditas no que vês, mesmo que não seja visível. Pensas nos teus tempos de linguística: audível / visível. Sintagma e paradigma. Agora, nesta noite pela qual entras enquanto o dia sai, és tu o eixo horizontal e o dia o outro, o vertical, ao longo do qual se organizaram as horas, os futuros, os passados e tudo aquilo que os preenche, a todos. 

O tempo é um rio que desagua num delta com dois braços: indiferença e sentimentos. As aluviões acumulam-se em cada um deles. Cada vez separa melhor as areias de um e de outro.

Agradeces ao dia, à noite. Gentilmente. Dormes.

.....

Com as palavras teces um tapete que o tempo vai desenrolando à tua frente, enquanto caminhas puxado pelas palavras. 

Diário de Bordos - Lisboa, 19-01-2025

A tarde foi passada a encaixotar livros e a reclamar contra esta porcaria desta língua que me obriga a dizer encaixotar em vez de encaixar. Estive a pôr livros em caixas, bolas, não em caixotes. São muitos livros e penso que são como as bebidas: muitos sim, demasiados não. E como os amores, já agora. Estes com a vantagem de estarem mais ou menos no passado. "Dantes tinha quatro membros flexíveis e um rígido. Hoje tenho quatro rígidos e um flexível", lembram-se?

Ainda sou do tempo em que se sabia ver a diferença entre muito e demais. E entre membros e membros. E entre ser feliz e estar feliz. E entre tudo e coisa nenhuma.

..........
Mais uma noitada soberba no Retro Wine Lounge, depois de um jantar soberbo n'A Colina.

É como estar enterrado até à cintura no pântano mais bonito do mundo. A arte consiste em  olhar para cima e esquecer o que está em baixo. E recordar que tudo o que está em baixo sobe e em cima desce.

........
Esta tarde passaram-me pelas mãos centenas de livros. Uns não sabia que tinha, outros quero reler e o resto ler. Parece uma história de amor, não é? Não. 

É.

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Para além da história das flexibilidades, envelhecer consiste em fazer cada vez menos erros mas estes serem cada vez mais caros.

Preferia os erros da juventude. Não só porque eram mais baratos, nas também porque eram mais divertidos.

18.1.25

Noite, ventres e outras esperas

Entras gentilmente nessa noite, como entravas num corpo que te conhecia e esperava. É uma descida lenta, suave, sem solavancos, como se a noite te conhecesse, ela também.

Como os ventres te esperavam.

Casa, vida

Possivelmente, "Vou para casa" é a melhor coisa que um homem pode dizer a alguém. Porém, esta hipótese deve ser testada, avaliada e validada.

Acções que exigem quase uma vida, cada uma delas. 


Tempos, assimetrias

O grande, inultrapassável, defeito do tempo é não ser assimétrico. Digo-te: devias ter mais vinte anos. Respondes: e tu menos vinte. Nunca estes tempos se encontrarão. 

Nunca se encontraram, verdade seja dita.

Vida, obra-prima

O tema era a relação entre a vida e a arte, mas para ele essa era uma falsa questão.  

Compreensivelmente: dedicara toda a sua vida - sem o saber - a fazer dela a sua obra. Perto do fim, descobriu: a) conseguira; e b) era uma obra-pima.

Infelizmente não contava como arte. Não a tinha premeditado.

17.1.25

"Pelos atalhos por onde a erva cresce"

O último livro de Knut Hamsun chama-se ou foi traduzido por qualquer coisa como "Pelos atalhos por onde a erva cresce". Ou coisa que o valha, não me apetece ir ao Google verificar. Tivesse eu o livro à mão e teria a certeza e retomá-lo-ia aonde o deixei. Mas não tenho. Aquilo é uma espécie de auto-apologia (nota: hesitei entre panegírico e apologia. Fica este). Quem escreveu Mistérios, Fome, Pan et al. não precisa de se desculpar de coisíssima nenhuma.

Hamsun é um dos maiores escritores de sempre, escreveu um dos maiores romances de sempre (chama-se Mistérios, se por acaso) e como tinha simpatias nazis foi multado, condenado e mai-lo raio que o parta. Isto para quem pensa que os males da modernidade começaram hoje. Se não me engano até o Nobel lhe tiraram, mas disto não tenho a certeza.

Até porque não é disto que queria falar quando Hamsun me invadiu a memória e o desejo (de acariciar um livro, entenda-se). Era desta noção de estar num atalho já tantas vezes percorrido, um atalho que leva a lado nenhum. Ou melhor: sempre ao mesmo sítio.

Percorro de novo o atalho já tantas vezes percorrido, bilhete de desembarque na mão, bornal à bandoleira, pergunto-me "Porra? Porra? Porra?" e respondo "Porra!"

Por onde as ervas crescem? Sorte têm elas, que pelo menos tiveram tempo para crescer.

Meias-águas

Não é nadador de meias-águas. "Ou ando pelo fundo ou nado no alto, mas no meio não me ponham que não me ajeito."

16.1.25

Ironia, amor, leveza e suicídios

Releio Cannery Row (se não me engano, em português traduzido por Bairro da Lata). É um dos meus livros favoritos de Steinbeck. Já não o lia há tantos anos que seria mais fácil contá-los em décadas. Foi uma das minhas grandes escolas de ironia e de amor pelas pessoas (este um pouco esquecido, lamentavelmente). 

Nas primeiras vinte páginas há dois suicídios. Para quem escreve com tanta sensibilidade e leveza de traço não está mau.

15.1.25

Na vida

Dormes com dois edredons dobrados ao meio. Quatro camadas de calor. Escuridão absoluta, ruído zero. És um sem domicílio fixo de luxo, alguém um dia te disse. A amizade é um castelo e o amor uma palhota. Uma espécie de história dos três porquinhos ao contrário: a casa que a priori parece mas forte é a que desaba primeiro; a que foi feita primeiro é a que dura mais tempo. Quem sopra? A vida, dirias, se te apetecesse aconchegar-te nos lugares-comuns como te aconchegas debaixo dos edredons. Na insuportável simplificação de "a vida". Fica "a vida". Estás farto de complexidades, complicações e afins. Voltaste à casa da partida, que é a ausência de casa. Voltaste à vida, que é a ausência de morte. Voltaste à ausência, presença constante. "Who is the third who walks always beside you?", perguntava Eliot. Se fosse eu, perguntaria "Quem é o outro que caminha sempre ao teu lado?" e a resposta seria "Ninguém". Não o de "O meu nome é Ninguém" mas ninguém, mesmo, ausência de alguém. Seria um mentira, claro. Há sempre uma parte de mentira no queixume, na pieguice. Até na poesia há, quanto mais na vida. 

N'empêche. Vou na estrada de regresso ao ponto de partida, acompanhado pelos de sempre: Ninguém, eu e a realidade, que me alberga e chicoteia a lamechice, essa cadela piolhosa.

Diário de Bordos - Porto, Portugal, 15-01-2025

O Porto, toda a gente sabe - e quem não devia saber - é sinónimo de almoço n'O Buraco, jantar no Solar do Moinho de Vento e copo pré ou pós-prandial no Candelabro. Hoje (isto é, ontem) a romaria respeitou o trajecto à linha. Até na inclusão do Pipa Velha para o LBV pós-favada num Moinho de Vento desoladoramente quase vazio (desoladoramente é uma semi-ironia. O serviço foi ainda melhor do que o do costume). E teve bónus: livrarias Flâneur, Rosebud (John Steinbeck's Cannery Row, dois euros. What else?), Térmite e a companhia da C. R. - interrompida subitamente por motivos veterinários mas agradável como sempre.

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Percorro o Porto de bicicleta e penso que a CML, quando receber queixas de ciclistas sobre a pavimentação das ruas da cidade, devia mandar os queixosos pedalar um dia no Porto. Regressariam a Lisboa e dariam graças. Lembram-se daquela anedota do gajo que vai ao sábio queixar-se de que a casa aonde vive é demasiado pequena? O sábio responde-lhe que precisa de meter uma cabra em casa (assumindo que a que lá está não o é), depois um porco, depois uma ovelha e por aí fora. Quando o homem está à beira da explosão, diz-lhe para pôr os animais todos na rua e pergunta-lhe o que pensa da casa. «É óptima», responde. «Enorme.»

Passar-se-ia o mesmo com as ruas da ex-capital do Império depois de uma visita à actual capital do Norte.

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Quinta-feira repetirei a dose, desta vez com um duplo bónus-companhia: almoço com o A. G. e jantar com a C. P. e o D.P.F. Uma cidade é feita de gente, lembram-se? (Penso que não. Ninguém liga peva ao que eu digo.)

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Tão pouco dormirei no meu bem-amado hotel San Marino. É uma pequena traição, uma infidelidade sem consequências, um desvario provocado por uma crise súbita de Razão. Acontece a qualquer um. Vim dormir a um airBnb, por sinal bastante razoável e já reservei a noite de quinta.

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Pequena reflexão causada pela espuma dos dias: se a solidão é um pecado mortal (CPC dixit) a quem o devemos confessar?

Provavelmente à escrita. Não, C.?

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ADENDA 

Notas soltas:
1 - Os automobilistas do Porto são como os de Lisboa. Buzinam muito. Como os baboons do Cabo, guincham que se fartam. Devo contudo sublinhar, agradado, que nenhum me dirigiu o seu protesto. Aquilo passa-se entre eles - contrariamente aos mencionados macacos, de resto, que reclamam contra tudo e todos.

2 - A minha bicicleta não se adapta bem ao Porto: é uma bicicleta de cidade. (Da série inglesa "In praise of older jokes an other demons".)

Águas gélidas?

Patinas em gelo fino mas o rio é longo e a paisagem bonita. Pensas que o prémio vale os riscos do caminho. Vês uma fissura e pensas que estás equipado para cair nas águas gélidas da solidão - esse «pecado mortal» - se for caso disso. A questão não é essa. É saber se tens vontade de cair. 

Ou de continuar a patinar.

8.1.25

Aliteracôes e outras dúvidas

Uma mama numa mão e na outra a dúvida, enrolada junto à face: que fizeste dessa vasta estepe que passo a passo dia a dia atravessas a que outros chamam vida e tu eu, simplesmente? Pela pele te percorro pé ante pé e me pergunto que pele é esta que a noite me pôs nos dias? Avisa da vida a saída com a devida antecedência mas não faças da cedência a tua essência. Não entres na noite sem uma mão no mar e a amar ama a mama que tens na mão, o mar que ta trouxe e o olhar aonde ele e ela vivem.

7.1.25

Perspicácia, mitos e descrença

A desconfiança, o cepticismo bacoco, a descrença são actualmente a melhor prova de inteligência e de perspicácia. São por assim dizer o último refúgio dos vazios de espírito. Acreditar em alguma coisa, em alguém,  é prova evidente de ingenuidade, também conhecida por estupidez.

Porém, dada a necessidade inata de o homem acreditar em alguma coisa, constroem-se outros mitos, como salvar o planeta reduzindo os puns das vacas, circulando em carros eléctricos ou salvar a comunidade acreditando no poder benéfico da indignação e da censura.

3.1.25

(Cont.)

Envelhecer é destapar-nos das camadas de ignorância que nos têm coberto desde que nascemos, como placas geológicas mas com tempos mais breves. Ou dos cobertores de uma noite fria quando o dia nasce.

Diário de Bordos - Lagos, Algarve, Portugal, 03-01-2025

Não é bem uma questão de «só os imbecis não mudam de opinião». É mais «crescer e aprender». Ou «é muito difícil ser jovem e não ser ignorante». Ou, mais realisticamente: «em jovem eu era um palerma e à medida que fui crescendo fui sendo-o menos. Infelizmente ainda não cheguei ao nível zero da palermice mas lá chegarei. Basta morrer.»

Encontrei o canal Mezzo na televisão doméstica e oiço um programa dedicado ao trio Play Bach, coisa que há coisa de quarenta anos não apreciei. É preciso ser idiota, não é? Talvez não. A minha hipótese é: «Não. Basta ser jovem.» Essa hipótese é facilmente falsificável: milhares de jovens ouviam isto e gostavam e apreciavam conhecedoramente. Ou seja: a minha hipótese muda: «Basta ser ignorante.» A palermice e a ignorância andam sempre de mãos dadas, não é?

É.

..........
Inovação no glühwein: acrescentei feno-grego e as passas que comprámos na Cafélia. O feno-grego é o resultado de uma intensiva exploração de Lagos à procura de alcaravia. Encontrei os dois num minimercado chamado Go Minimarket, pertencente a senhoras holandesas, sul-africanas e não sei que mais.

Ainda há quem seja contra a presença de estrangeiros em Portugal? Acreditem se quiserem, mas antes do Go fui a três «gourmets» (Google dixit) e as pessoas não sabiam sequer o que era alcaravia. Não sabiam. Nunca tinham ouvido falar. Alcaravia.

Isto transporta-me aos meus anos de chegada a Portugal em dois mil e dois ou três: telefonava aos supermercados de Cascais para saber se tinham ervas frescas - como cebolinho, por exemplo. Acreditem se quiserem. Hoje não telefono. Ainda me lembro da reacção àqueles telefonemas. Visito-os e constato in persona a reacção. «Alcaravia? O que é?»

Lá encontrei. Go minimarket. Goed so, jonger. Dank u wel.

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Resumindo: duas rodelas de laranja, dois paus de canela, cardamomo, cravinho, açúcar mascavado, feno-grego, passas, alcaravia. Aquecer devagar. Devagar. No momento de servir acrescentar rum barato. Beber. 

Pensar na inabalável associação do calor e da sorte. Senti-la. Até à medula. Beber de novo. Repetir. Parar de pensar. Até à medula.

In Sónia?

Lá estás tu com a mania dos anglicismos. Não, não se chama Sónia.

Yin e Yang?

O belo e o feio, Deus e o Diabo, a ganância e a generosidade, o amor e o ódio... Os chineses têm razão quando representam o mundo aos pares interligados e perdem-na quando os pintam de preto e branco. A cor dominante da realidade é o cinzento, em todas as matizes possíveis. 

De vez em quando lá aparecem uns pingos de cor a alegrar o cinzento, é certo, mas isso são contas de outras metáforas.

Antares

Leio cada vez menos e mais dificilmente, por razões psicossomáticas. Isto é, psíquicas e somáticas. É por isso um prazer ler Antares, de Clara Pinto Correia, mesmo que ao ritmo de um caracol a atravessar um ringue de patinagem no gelo. Acabo de passar pela mais bela descrição de uma cena de amor que me foi dada ler por um autor português.

Pena é o trabalho de edição, que deixa passar uma virgulação anárquica e outros pecadilhos menores. 

A este ritmo espero terminar em dois mil e cem, o que me parece adequado para uma auto-exegese desta amplidão. E beleza.

2.1.25

Diário de Bordos - Lagos, Algarve, Portugal, 02-01-2025

Construir casas quentes e mantê-las aquecidas requer energia anímica. Tanta quanto aquela que se estuda nos manuais de termodinâmica. Requer também um Estado menos predador - ou, na sua ausência, um povo que se revolte contra os impostos com que o albardam. Não temos nem um nem outro. Aceitamos como fatalismo o que não passa de resignação, outra palavra para cobardia. Inevitavelmente, penso naquela revolucionária alemã que a seguir ao vinte e cinco de Abril veio para Portugal acompanhar a gloriosa revolução. Pouco tempo depois foi-se embora. "Um povo que não consegue ter pressão na água do duche nunca será revolucionário" terá a senhora explicado, cheia de bom-senso. Suspeito que  regressou à sua terra antes do Inverno: depois, teria certamente acrescentado à pressão da água nas torneiras a incapacidade de se aquecer devidamente. Felizmente temos baratos e bons os vinhos e as aguardentes.

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Dias de televisão, frio e discussões inter sororibus. Felizmente, tudo isto compensado com um saldo bastante positivo por excelentes vinhos, lautas refeições e acolhedoras aguardentes  num cenário digno do Charme Discreto da Burguesia.

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Lagos - almoço na Adega da Marina, cheia como sempre. Este "restaurante" é um mistério: como é que uma cantina com capacidade para acolher os espectadores de um "derby" (aspas porque é irónico) consegue fazer comida tão boa?

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O T. está com um cancro na próstata e eu fiquei devastado um bom par de horas. Depois aterrou em mim a noção de que os tratamentos evoluíram e aquele casal é capaz de enfrentar isso e muito mais.

E ainda há quem seja contra o optimismo. De devastado passei a simplesmente preocupado e assim ficarei até ver. É o meu melhor e mais antigo amigo.

Chegámos a uma idade em que temos de nos ver mais vezes, é o que é.

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Viemos passar uns dias a Lagos, a L. e eu. É sempre com um indescritível prazer que revejo esta cidade. Para completar o ramalhete só me falta um par de boas notícias. Enquanto não chegam, vou trabalhar para fazer outras.