7.7.07

Noite da Benção

I
Resisto ao primeiro miúdo, que me pede dinheiro à saída do táxi; resisto ao segundo, um bom bocado mais velho; não resisto à terceira, uma senhora andrajosa que aparenta trinta e poucos anos - deve ter vinte - e que não me pede dinheiro: pede-me de comer e que lhe compre comida para a filha, que tem, diz ela, cinco meses.

Levei-a à barraca dos churrascos primeiro, e à farmácia depois. Comprou leite para bebé, farinha, biscoitos para ela (mais tarde viria a oferecer-me um) - mas o que me convenceu da qualidade da sua história foram as fraldas. Os leites e as farinhas ainda podem ser usados para outras coisas; fraldas não.


II
Lembro-me do meu filho Tomás, que em Moçambique chorava quando me ouvia dizer aos miúdos da rua que não lhes dava dinheiro; e de uma vez no Rio, há trinta anos, quando um puto me roubou o bife do prato. Eu comia numa esplanada e ele passou a correr e, com uma precisão notável, levou-me o bife. "Leva também as batatas", gritei-lhe. Ia sendo linchado pelos outros clientes, porque estava a "incentivar o crime".

Era a época do Pasquim, o melhor jornal satírico que me foi dado ler - "Volta, Negão, abandonei o menor" foi uma das primeiras primeiras páginas que lhe vi, numa época em que o "menor abandonado" era o tema de todos os jornais "sérios", etc..


III
Uma boa metáfora do Brasil, de hoje e de ontem e de sempre, suspeito: ao lado de um homem-estátua, impecavelmente maquilhado de "gentleman" - chapéu de coco, fraque, polainas - uma banda frenética de adolescentes dança hip hop, tão depressa que dá tonturas.


IV
Pela primeira vez desde que cheguei estou em modo "trópicos": tensão, proteger as costas, avaliar permanentemente as pessoas com quem me vou cruzar e afastar-me delas, sempre, prever caminhos de fuga ou de protecção, olhar constantemente para os lados, mão esquerda no bolso a proteger a carteira, mão direita fora, livre, ouvidos atentos, hiper-sensibilidade geral. Há muito tempo que não estava assim. A adrenalina é uma droga boa.


V
É a festa da Benção. É como jogar no casino: uma pessoa sabe que vai perder, só não sabe quanto, ou quando.

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