26.9.08

Uma vida

A miúda era feia e estava, infelizmente, longe de ser muito inteligente. Ou mesmo de só um bocadinho, mais que não fosse. A verdade é que por uma razão qualquer conseguiu engatar o mais rico de entre nós todos - e Deus sabe se éramos um grupo de "desenrascados", como se diz no nosso país.

Durante muitos anos ele trabalhou muito, ganhou muito dinheiro, tentou (e conseguiu) fechar os olhos. Ela fez-lhe dois filhos insuportáveis; mantinha uma casa que era, até hoje, o que de mais perto de uma pocilga me foi dado ver; e dava de beber aos amigos, como uma indesmentível e indecifrável generosidade. A verdade é que tinham uma cave sublime, só de grandes crus e colheitas excepcionais, e ir "beber um copo" a casa deles, à tarde, transformava-se numa prova dos melhores vinhos do mundo em quantidades incontroladas.

Aos poucos, ela foi ficando religiosa, cada vez mais. Ao princípio ninguém levava aquilo a sério. Mas a verdade é que se foi embrenhando naquela igreja (ortodoxa, porque um dos avôs era russo, ou coisa que o valha). Um dia fugiu com o chefe do coro, ou com o sacristão, nunca percebi muito bem.

Assim que resolveu o divórcio o marido, o nosso amigo, um dos pilares - havia anos desaparecido, desvanecido, evaporado - do grupo casou-se de novo. Desta vez com uma esplêndida loira, infinitamente mais estúpida (não há relação de causalidade) do que a anterior e menos generosa. Esta punha-lhe a casa num brinco e os cornos, todas as tardes com o jardineiro, que ele pagava a peso de ouro porque ela lhe explicava que era muito penoso podar a sebe alcandorada num escadote.

Entretanto ele envelhecia, ganhava dinheiro fazendo túneis, pontes e linhas de caminho de ferro e fechava os olhos. Os filhos cresceram idiotas da quinta casa, coitados, coitado. Quando ele morreu dilapidaram-lhe a fortuna nas tascas de tango para turistas de Buenos Aires, para onde tinham emigrado para fugir aos rigores da tropa no país deles. Da mãe esqueceram até a existência. Muito brevemente já nem do nome dela se lembravam.

Contudo, foi a última a morrer nesta história. Até o sacristão que, soubémo-lo depois, era mais novo e roubava as esmolas da igreja morreu antes dela, logo que estas manigâncias se descobriram todas. Ela lembrava-se dos filhos, queria revê-los, sentir-lhes o cheiro, as peles frescas e os sorrisos confiantes, cheios, inteiros. Mas perdera completamente o contacto com eles, não sabia sequer por onde andavam.

Passava os dias numa tasca do centro histórico da cidade a cantar cânticos da liturgia eslava. Fazia-se chorar a si própria e a todos os que a vinham escutar, para além das pedras da calçada e de um outro wattman dos eléctricos que por lá calhava passar.

Quando morreu ainda era feia, talvez mesmo mais do que em nova. Fui vê-la à morgue porque, por uma razão que ainda hoje estou por perceber, ela deixou o meu nome como contacto para emergências. Pela primeira vez, vi-lhe uma expressão feliz: não tinha que lutar contra o que sabia ser o seu tremendo, tremendo inimigo: ela mesma.

3 comentários:

  1. Gostei muito de ler, Luís. Não sobre uma, mas várias vidas, «tragicamente» emaranhadas. Ressalvo o marido, que, fechando os olhos, parece ter-se assegurado um percurso sereno e rectilíneo. Será essa a moral da história: fechemos alegremente os olhos, que o mais feliz é o que não vê? :-)

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  2. Talvez se possa, Luísa, parafrasear um versículo muito citado: "felizes os homens que fecham os olhos porque não vêem a carantonha da mulher, nem o resto", ou coisa assim. O marido teve, efectivamente, um percurso rectílineo como - porque não? - as bolas de snooker que ele todas os dias jogava, num bar ao lado do escritório, vazio àquela hora.


    PS - obrigado, uma vez mais, e por todas aquelas em que não lho disse.

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  3. Não tem nada que agradecer, Luís. Dá-me mais prazer comentar do que «blogar» - a responsabilidade é menor - e o Luís coloca-nos perante muitas interrogações e subtis provocações… iscos, numa palavra, que o peixe não pode deixar de morder. :-)

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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.