31.3.10

Cenas da vida onírica

A mulher aproveitou o autocarro para desejar Boas Páscoas a todas as suas conhecidas - Donas Odetes, Laurindas et al. Fazia um banzé desgraçado, porque falava muito alto. A certa altura o chauffeur parou o carro e gritou lá da frente "Ó senhora, cale-se. Não vê que está a incomodar toda a gente?" mas a senhora continuou, impávida. Depois foi a vez dos outros passageiros. Uniram-se e começaram a cantar, ritmando bem as sílabas: "ca-le-se/ca-le-se/ca-le-se". Mas a senhora não se calava. "Ó Dona Berta, olhe veja lá o que me estão a fazer. Não me deixam falar. Está? Está? Está a ouvir?" Não, a Dona Berta não estava a ouvir. Tinha provavelmente desligado o telefone.

Os passageiros calaram-se, também; mas entretanto o condutor enganara-se no caminho e tentava fazer uma manobra de inversão de marcha numa rua bastante estreita. Ficámos ali tempos sem fim até o homem terminar a manobra, coisa que não conseguiu sem amolgadelas no autocarro e nas paredes das casas de um lado e outro da rua. Ninguém sabia se devia acusar a senhora se o senhor. Olhavam alternadamente para uma e para o outro (ela estava sentada no banco de trás) como espectadores num jogo de pingpong. Ou de ténis, vá lá.

No banco à minha frente uma adolescente deixava-se acariciar por um senhor de idade; ao meu lado uma senhora jovem puxava-me as mãos para as mamas e dizia "acaricie-as, foram feitas para si". O chauffeur transpirava em bica e dizia palavrões. Qualquer coisa a ver com os horários. Um colega passou no sentido contrário e levou o indicador à testa, para lhe dizer "és maluco". O "nosso" condutor - neste momento já tinha conquistado a simpatia da maioria de nós - fez-lhe um manguito, acompanhado por quase todos os passageiros. Já se tinham esquecido da senhora que desejava Boas Páscoas em voz muito alta.

Eu acariciava as mamas da que estava ao meu lado; e beijava-a. Era muito bonita, com cabelos sal e pimenta e um sorriso e um olhar jovens, vivos, frescos. É uma combinação à qual não resisto e perguntei-lhe "quer casar comigo?" "Não acha um bocadinho cedo?", respondeu. "Não". "Não sei" "De quanto tempo precisa para pensar?" "Não vou pensar nisso; a resposta chegará per si" "Muito bem; eu espero. Gosto de esperar". Beijava como olhava: com leveza, frescura, alegria.

O autocarro já estava no trajecto certo, e os passageiros precipitaram-se todos para a porta de saída. Eu deixei-me ficar. Era o único. Fui ter com o condutor e disse-lhe "leve-me ao escritório, por favor". "Onde é que é?" "Em Canary Wharf". "Onde é que isso fica?" Expliquei-lhe; ele fez que sim com um aceno de cabeça.

Gosto de dias que começam assim, bem.

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