6.12.14

Nas tintas, em sentido lato

Um gajo sabe que qualquer coisa está errada quando não se lembra do último gin tónico que bebeu; e qualquer coisa certa quando se está nas tintas para o que o Facebook vai fazer com os dados que dele recolher: não vai com eles ganhar para pagar os milissegundos que levar a compilá-los. (Gosto deste verbo. compilar. Se pudesse usá-lo-ia mais vezes). São planos diferentes, claro. Do corpo ao bolso vai um abismo. O qual agora se tenta preencher com mais vinho e menos gin tónico, com mais FB e menos do que quer que fosse antes dele.

No fundo um gajo está-se nas tintas e pensa na anedota do cavalo que está a ser vendido. Quando o vendedor o solta no prado para que o comprador o veja galopar o cavalo espeta-se em todas as árvores que lhe aparecem pela frente. "Este cavalo é cego", protesta o potencial futuro dono. "Não. O cavalo não é cego. Está-se nas tintas, somente (he just doesn't give a fuck, no original)".

Um gajo não tem árvores à frente. Tem ausências. Mas está-se nas tintas.

Um gajo é livre, outra vez. Que importam as árvores, as ausências, o raio que o parta ou a puta que a pariu? Pouco.

"Pouco" é a essência da liberdade: se alguém a pudesse espremer sairia "pouco": dinheiro, tempo a perder com o muito dos outros, pouca roupa, paciência, pouco com que preocupar-se. Pouco.

A liberdade é um conjunto de poucos que adicionados fazem "tudo".

O calor voltou a Galveston; o trabalho prolongou-se por mais uns poucos dias; pouco há a dizer. E menos ainda que fazer. Um gajo está-se nas tintas. A ausência de cabelo, por exemplo. Hoje leu num jornal qualquer que a melhor maneira de disfarçar uma receding hairline [como raio se diz isto em português?] é andar com o cabelo muito curto. Mas um gajo quer acordar todas as manhãs e pensar "tenho de ir cortar o cabelo" e deitar-se todas as noites sem sequer pensar na hairline, quanto mais se ela está a recuar, avançar ou estável.

Também há presenças, naturalmente: a barriga, por exemplo. Que se foda a barriga.

Estar-se nas tintas é a versão civilizada de querer que se foda (e mais ainda de estar a cagar-se). Não são intercambiáveis: a civilização não se troca por nada, e a opacidade de estar-se nas tintas tão pouco.

Um gajo trabalha, é reconhecido e apreciado no seu trabalho, que é das poucas coisas para as quais um gajo não se está nas tintas. Para o resto está, tudo: presenças, ausências e assim-assins. Felizmente é recíproco: as tintas estão-se para um gajo.

É assim que um gajo navega num mar de tintas, as que se fodam e as outras. Num mar de liberdade, que um dia chegará ao fim. Mas como amanhã não é a véspera desse dia não é depois de amanhã que um gajo deixa de se estar nas tintas.

O trabalho prolongou-se, a música continua excelente, o açúcar que se foda, E a vida? pergunta alguém. A vida está-se nas tintas para um gajo, e um gajo para ela. Não passa disto: uma mistura de presenças, ausências, vinho tinto, boa música, trabalho, hairlines a recuar, e a certeza banal de que ninguém sabe nem sonha de que será amanhã feito. Em sentido lato, amanhã.


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