15.3.15

Diário de Bordos - Fort Lauderdale, Florida, Estados Unidos, 15-03-2015

O trajecto do Hotel Deauville, onde partilhava uma camarata com, entre outros, dois ex-polícias – um Americano reformado (e sem dinheiro, todo o hostel sabe porque o senhor fala muito alto ao telefone) e um porto-riquenho reciclado em chauffeur de camiões - a Marathon demorou quase doze horas, em vez das sete ou oito que eu tinha estimado: engarrafamentos vários e monstruosos em Miami por causa de uma corrida de automóveis e de acidentes na autoestrada (não relacionados), distâncias muito maiores do que me tinham dito (o polícia americano, o tal que conhece muito bem o sistema de transportes local e está teso, situação que me é bastante familiar) e, last but not least, a má qualidade da informação disponível. Planear uma viagem destas em transportes públicos urbanos demora tanto tempo como a viagem em si. Mais vale planeá-la à medida que vai decorrendo. (Hoje o regresso flui linear, tranquilo. Parece que faço isto todos os dias).

A vantagem estando, claro, na velha antinomia tempo / dinheiro. Gastei pouco menos de quinze dólares. Com a Greyhound ter-me-ia custado a viagem cinquenta - e demorado quatro horas. Um cálculo rápido permite ver que com a Greyhound a hora de viagem ter-me-ia saído a doze dólares e meio, contra os um e dez que paguei (os valores são aproximados) - .

E não teria passado por uma daquelas coisas que só acontecem a quem viaja e arrisca fazê-lo sem demasiados planos.

Cheguei a Florida City para apanhar o ultimo autocarro, aquele que me levaria para Marathon, às oito da noite. O autocarro saía às oito e meia. Fui comer qualquer coisa rápida ao McDo vizinho e escolher (a cabeça funciona melhor quando o estômago trabalha) entre correr o risco de ir para Marathon e não encontrar onde dormir ou ficar por Florida City, cidade tão pouco turística quanto é possível ser e onde teria portanto mais probabilidades de encontrar alojamento a um preço razoável.

Acabei por apanhar o autocarro, claro. Alguma coisa havia de aparecer.

Não foi uma coisa. Foi uma senhora que entrou a meio do percurso e se sentou na fila atrás da minha. Por causa da aparência dela perguntei-lhe se estava ligada a barcos à vela. Disse-me que sim e começámos a conversar.

O marido da senhora foi preso nas Bahamas por exceder o tempo de estadia autorizado. É preciso tirar de lá o barco (um double-ender de 32’, quilha corrida, casco de uma polegada de fibra) o mais depressa possível, antes que o Governo das Bahamas decida ficar com ele.

Não havia quartos em lado nenhum. Acabei por dormir numa cama de campanha num canto de uma tipografia onde S. trabalha a tempo parcial. A cama cheirava a cão que tresandava, mas dormi como há muito tempo não dormia.

De modo estou de regresso a Fort Lauderdale, com o dinheiro do bilhete de ferry para Freeport na carteira. Estive nove horas em Marathon, das quais sete a dormir.

S. vive num 37’ fundeado ali perto com quatro cães, quatro gatos e nove iguanas (estas em gaiolas, apresso-me a precisar). É adorável. Passámos a viagem de autocarro a negociar as condições e a conversar e no fim acordámos que eu não receberia nada, mas em contrapartida poderia ir a Cuba em vez de ir directamente para Haiti, seu destino.

Depois de Cuba sou pago à tarifa normal.

Não acredito que lá chegue: quanto a mim o marido vai ser solto amanhã quando a esquadra abrir e quando muito eu ajudá-lo-ei a trazer o barco para a Florida (ela tem algumas dúvidas sobre a ida para Haiti). Mas enfim, o projecto parece-me bom e a história bonita: um marinheiro à solta do mar vai de aventura para um sítio onde não terá onde dormir e no autocarro encontra um job e alojamento, trava conhecimento com duas pessoas adoráveis (S. e D., o dono da tipografia), passa mais de vinte horas em transportes públicos variados para regressar ao ponto de partida (se tiver sorte. Não sei se o Hotel Deauville tem cama disponível). E em consequência disso tudo vai a um país onde nunca esteve buscar uma embarcação que é mais ou menos o oposto absoluto daquela em que estava a trabalhar; no barco virá de passageiro um gato que vive a bordo. Como prémio ganha a possibilidade real de passar três ou quatro dias no mar (coisa de que está muito necessitado), sozinho (excepto no que respeita ao gato), numa embarcação sem motor (foi isso que provocou o atraso de R. e consequente prisão: uma avaria no veio do hélice).

Isto se for para Cuba. Se não for (o que de certa forma preferiria, aborrece-me saber um colega na prisão por estúpidos problemas burocráticos) logo se vê.

………
Pergunto a S. o que faz ela das iguanas que recolhe. “Solta-las?” “Não, a lei da Florida não permite que se soltem iguanas que se recolheram. Mas pouco importa, ou são cegas, ou doentes, ou foram maltratadas…” (Isto dito, o frenesim legislativo do Estado da Florida parece semelhante ao nosso).
“Maltratadas? Como é que se maltrata uma iguana?” Infelizmente a resposta perdeu-se nos meandros da conversa e fiquei sem saber. Mas quando me lembro da rapidez com que os bichos fogem quando alguém se aproxima deles a perplexidade instala-se e não se vai embora.

……..
Engarrafamento monstro em Fort Lauderdale. Tudo conspira para manter baixo o custo horário da minha viagem relâmpago a Marathon.

Em contrapartida o Deauville tem uma cama.

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