17.11.15

Diário de Bordos - Errol Flynn Marina, Porto Antonio, Jamaica, 17-11-2015

Numa carrinha desenhada para transportar menos de trinta pessoas somos quarenta, quarenta e poucos.

O chauffeur sabe conduzir e conhece o caminho. As curvas e contra-curvas sucedem-se com suavidade e elegância; o motor dá o que pode e, suspeito, um bocadinho mais do que deve. A suspensão aguenta estoicamente.

"Vais chegar cansado" prevenira-me M. na marina. Estava podre de razão: estou nisto há meia hora e sinto-me comprimido num torno gigante que um louco qualquer agita como se tivesse acabado de fumar uma pipa de crack.

O condutor engrena reduzidas e duplas embraiagens magistralmente, num timing perfeito. Lembro-me dos water taxis em Bocas, os que faziam a linha de Almirante: a mesma competência, o mesmo brio, uma igual necessidade de extirpar a monotia de um trabalho essencialmente monótono, a ganância. E penso nos autocarros de S. Luís, tão diferentes: bruscos, agressivos, zangados. Aqui não. O condutor e a estrada são um só, como nos livros zen e nas conversas das cabeleireiras.

Alguns pormenores são tocantes: o cobrador que põe uma almofada nas costas de um dos passageiros, o meu vizinho a queixar-se de que estou a apoiar-me demasiado nele ("you are leaning too much on me"), como se eu tivesse alternativa. Nem às costas do strapontin que partilho com uma senhora gorda chego, quanto mais a ele. Estou sentado à beira do banco, pernas encolhidas e dormentes. Mal consigo mexer o polegar com que digito no telefone.

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Das cinco coisas que tinha de fazer em Kingston consegui fazer três e meia. Dadas as circunstâncias não me parece mal.

Claro que ao chegar a bordo tudo mudou - a correia da bomba de fundo que tão facilmente encontrei e pensava ser difícil afinal não é a única avaria da bomba, esqueci-me dos [cones de madeira] (isto tem um nome) e gastei uma pipa de massa em táxis - são um absurdo de caro, aqui.

Tudo é caro na Jamaica. Acabam de me propor uma garrafa de rum por oitenta dólares, no bar da marina. Felizmente reagi a tempo. Oitenta dólares uma garrafa de rum? St. Maarten, ainda estás longe?

(Por que raio de carga de água quanto mais pobre é um país mais caras são as coisas?)

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Passei o dia em Kingston e fiz setenta por cento do que queria. Já só me faltam duas contigências a resolver: a multa e a tripulação (e os rizos e as malditas bombas, claro). Podia ser pior.

Kingston está dividida em duas: uptown e downtown. Não percebi se geograficamente há uma correspondência tão perfeita entre a realidade e as designações como a que há socialmente. Parecem dois mundos diferentes.

Mais uma vez penso no Brasil, onde as partes pobres e ricas de uma cidade são  duas galáxias diversas, divididas por linhas visiveis, palpáveis. Aqui não: a transição faz-se suave, gradualmente. Do Yacht Club para o shipchandler apanhei boleia do estafeta do clube, numa Honda 125 (creio, não garanto). Dei as voltas que ele tinha de fazer antes de me deixar: banco, assinar um cheque, procurar uma pessoa.

O resto fiz de táxi ou a pé. A boleia foi bem vinda, e não apenas do ponto de vista financeiro. As pessoas são adoráveis, simpáticas. E não é preciso usar capacete - nos táxis tão pouco é preciso cinto, mesmo no lugar da frente. Nem tudo é mau-.

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A viagem de regresso foi melhor ainda. Apanhei a mesma carrinha, por acaso. O cobrador prometeu-me que iria menos cheia e tinha marginalmente razão: não havia ninguém de pé. De resto, continuávamos a ser cinco por fila - na minha só havia uma senhora gorda - mas consegui apanhar o lugar ao lado do que queria: última fila, num dos cantos. Esse estava ocupado por uma rapariga magrinha que mal se mexeu quando me sentei.

Era noite. Ao princípio havia uma grande fila de automóveis à nossa frente e vínhamos devagar. Mas mal o chauffeur se apanhou com a estrada livre deu largas à sua habilidade. Que bonito é ver alguém fazer bem o que faz.

Eric, o meu vizinho e C., a Consulesa de Espanha acham perigoso andar nestes autocarros. Eu não acho. Talvez seja, mas as vantagens são tantas que compensam largamente o risco. Qual o chauffeur privado que conduziria tão bem como este? Onde veria as pessoas de pé dar a quem está sentado os seus sacos e estes serem aceites sem um murmúrio? O senhor que ia sentado na fila à minha frente, perto da porta, levava três volumes no colo: uma carteira de senhora, um saco de alguém que não vi quem era e o dele, grande. Entrou uma mulher para a secção "de pé" e depositou-lhe a carteira no colo com um pequeno aceno da cabeça, correspondido por um igualmente minúsculo consentimento.

A viagem custa quatro dólares por trajecto. Não sei se ou outros condutores são tão bons como este. Se forem, posso garantir que é de borla.

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Hoje o dia está pior. Nada avança e chove. Tudo chove em cima de mim.

Amanhã será melhor.

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