27.12.19

O monte dos sonhos abandonados

Vivo ao lado de uma estação de comboios que é a última da linha. Daqui, os comboios só podem voltar para de onde vieram. A estação é grande, tem bastantes cais, alguns já não usados, como um garfo com demasiadas pontas. Depois dela começa o lago. Digo começa porque a minha cidade fica-lhe numa das extremidades. Do outro lado, montanhas cobertas de neve que nos dias de foehn se aproximam e nos de chuva ou neve deixam de se ver.

Ao lado da estação há um pequeno monte invisível para a esmagadora maioria dos viajantes que chegam ou partem da cidade. Não tem forma, nem cor, nem cheiro. Não se sabe se é grande ou pequeno, arredondado ou pontiagudo, se é íngreme se espraiado. Perguntei a toda a gente na cidade, mas ninguém nunca o tinha visto. Os anos foram passando e eu afeiçoei-me ao lugar. Gostava da arquitectura, salva da destruição devido à manha do presidente da câmara durante a guerra: em vez de obedecer às ordens de couvre-feu, ordenou que se mantivessem as luzes todas acesas, para que os bombardeiros inimigos pensassem estar ainda no país vizinho.

Contudo, aquele monte intrigava-me. Seria eu realmente o único a vê-lo? Um dia entrei na loja da Monika, uma senhora de idade que para  ocupar a reforma vendia aguarelas e histórias do outro mundo (literalmente: ela acreditava na existência de mundos paralelos, realidades diferentes, cheias de fantasmas e energias benéficas ou  maléficas, consoante eram abordadas correcta ou incorrectamente). Estava nas traseiras, a fumar um dos três charros com que mobilava os dias. A cidade é pequena, mais vila do que cidade, ninguém rouba nada a ninguém (e muito menos à Monika, mas isso é outra história).

- Monika, olá. Bom dia. Como estás?
- Viva, Luís (ela pronunciava Louis, em francês, sem o s final: Lui). Estou para aqui a fazer arrumações. Olha, encontrei qualquer coisa que te pode interessar.

E mostra-me uma aguarela onde estava, claramente representado, o monte que eu continuava a ver e mais ninguém via.

- Não és tu que queres saber o que é isto aqui, ao lado da estação?

Fiquei paralisado. Monika fora uma das primeiras pessoas, depois do pessoal da estação, a quem eu perguntara que raio era aquilo e uma das todas que me respondera "Monte? Qual monte?'  Era grande, quase da minha altura; a idade não lhe curvara as costas. Embranquecera-lhe o cabelo e avivara-lhe a mirada, só. Há muito vivia sozinha, perdera o rasto ao marido. "Pelo menos neste mundo. No outro sei muito bem o que anda a fazer", dizia-me por vezes, quando eu lhe levava uma garrafa de schnapps local, mirabelle destilada por um vizinho nos tempos livres, que eram todos. O homem estava reformado e não fazia outra coisa se não destilar aguardentes, para ele e para os vizinhos.

- Aquele monte, Lui, chama-se o Monte dos Sonhos Abandonados. Foi começado pelo sacripanta do meu ex-marido, que o Inferno o tenha e o queime devagarinho. Um dia, resolveu abandonar os sonhos incoerentes, os sonhos que não fizessem sentido...
- Nenhum faz.
- Claro. Por isso o monte cresceu tão depressa, inicialmente. Todos os dias ele lá ia deixar um ou dois, mas pouco a pouco os sonhos foram mudando. Começou a sonhar sonhos com sentido, coerentes e verosímeis.
- Contos?
- Exactamente. Contos. Acordava, sentava-se à mesa, escrevia-os numa velha máquina de escrever que o pai dele adquirira a um soldado americano e vendia-os a um jornal daqui. Nessa altura os jornais compravam e pagavam bem, mesmo a pequena imprensa local. Eu ilustrava o que ele escrevia. Vivíamos bem. Todas as noites fazíamos amor. Dizia-me "Os sonhos ficam melhores se forem precedidos de uma boa foda." Volta e meia lá lhe aparecia um sonho incoerente e ele levava-o para a estação. Nesses dias, as histórias eram mais fracas, mas o editor do jornal não se importava: sabia que no dia seguinte a coisa melhoraria. Tens alguma coisa que se beba?
- Não, mas posso ir a casa buscar uma mirabelle.
- Não. Vai antes aqui ao lado ao Joseph e compra-lhe duas cervejas. Diz-lhe que são para mim. - Nunca vi Monika pagar o que quer que fosse onde quer que  fosse, mas a verdade é que toda a gente lhe vendia tudo.

Bebemos a cerveja devagar e em silêncio. Entre dois goles eu olhava para a aguarela. O monte estava lá, claríssimo, mas era impossível definir-lhe a forma. Exactamente como quando eu o via, nas minhas excursões quase diárias à estação.

- A verdade é que o monte deixou praticamente de crescer. O palerma deixou de ter sonhos incoerentes. Um dia acordou, disse-me "Não sei para onde vou, mas sei que não é por aqui", pegou num saco, pôs meia dúzia de camisas, dois pares de calças e um de sapatos lá dentro, meias (o filho da mãe não usava cuecas, vê tu bem), lâmina de barbear, pasta e escova de dentes - pergunto-me para quê, o homem só lavava os dentes quando os morcegos se lhe queixavam do hálito - e foi-se embora. Nunca mais escreveu uma linha, que eu tivesse visto. Durantes uns tempos enviava-me dinheiro, todas semanas, o que significa que estava a trabalhar - gostava de ser pago à semana - mas depois até isso parou. Percebeu finalmente, aposto, que um sonho coerente é como água destilada: é muito útil mas é estéril.

- Então porque não voltou, buscar os sonhos ali amontoados? Estão ali imensos, teria material para muitos anos.
- Não sei. Provavelmente uma história de saias. Se calhar, começaram-lhe as fodas a não ser tão boas... Vai buscar a aguardente, Lui.

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