21.9.20

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 21-09-2020

A chuva parou, por agora. Vai ficar até sexta, com intermitências. E as temperaturas vão baixar, tornar-se mais consentâneas com a estação do ano. E eu, quando me tornarei consentâneo? E com quê? Hoje pensei fazer uma ode aos sofás. Isto é, uma ode a dormir num sofá. Fazer e desfazer a «cama» todos os dias deve ser a melhor forma de se ter a noção de que hoje é outro dia. Nem sequer amanhã. É hoje. Um gajo acorda, tira os lençóis, dobra--os, dobra o edredon, ajeita a almofada, o sofá-cama volta à posição sofá, a roupa da cama vai para o gavetão... ecco. Uma noite passou, não deixou traços, o novo dia encontra-te fresco e disposto. Todas as manhãs, todas as noites os rituais repetem-se. Um amigo do meu Pai dizia que não tendo carro tinha mil e quinhentos carros - era a quantidade de táxis que havia em Lisboa nessa altura. (Hoje são três mil e quinhentos, diz o Google. Não se pode dizer que o aumento tenha sido exponencial. Ou então a minha memória engana-me. Pouco importa.) 

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Genebra também aderiu à moda das máscaras, do distanciamento social e da «luta contra o vírus». Teria de ir para a Suíça-alemã para escapar a isto. Há uma componente cultural fortíssima nisto da »luta». Os nórdicos são mais pragmáticos e menos cobardolas do que os latinos. E há uma função social, também: o medo une as pessoas, tanto quanto as separa. Há um inimigo comum. Paradoxalmente, para nos unirmos contra ele temos que nos distanciar, desunir, de certa forma. É por isso que nós, os cépticos, somos tão violentamente atacados: «assassinos», «idiotas»... So não nos chamam «associais» porque é um termo demasiado complicado para a maioria dos do grupo.

O problema é que do social à política vai um minúsculo passo, daqueles que dávamos quando escolhíamos as equipes de futebol, pé ante pé,  E claro, agora quem manda é a política. Nunca gostei muito de governos de tecnocratas, mas o caso da Suécia faz-me pensar. Claro que os tecnocratas devem ser competentes. Se forem como os Buescus, os Fróis e os Joões Seixas da nossa praça estaríamos ainda pior. 

Aqui em Genebra tentam fazer algo ligeiro. Hoje vi uma turma de escola, miúdos dos seus dez anos, na rua. Nenhum usava máscara, nem o professor. Não sei se é por estarem na rua. Os jornais e a televisão estão enviesados, mas isto carece de análise, ainda não os li suficientemente. O jornal esquerdista local, Le Temps, sei que está, mas esse não li uma única vez. Pertence ao Monde e está ainda mais à esquerda. Não me apetece ter deixado de ler os pasquins nacionais para ler os dos outros.

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Cada vez gosto mais de Genebra e cada vez mais estes preços me enfurecem. Nunca vislumbrei em mim manisfestação de inveja e impotência mais límpida, clara, cristalina do que a que me assalta quando me passeio por estas ruas escovadas mais do que varridas, bem pavimentadas, com poucas buzinadelas e cheias de bicicletas. Autocarros e eléctricos ininterruptamente (e se compararmos os preços numa base PPP mais baratos do que em Lisboa). Depois sento-me para beber um copo de vinho - um decilitro, medido ao milímetro - e a impotência toma o lugar da inveja.

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Com a diferença a que o sofá-cama dá forma, a vida amical é bastante semelhante à vida conjugal. S. trabalha, eu cozinho e trato da cozinha, leio e escrevo. Quando trabalhava aqui, a diferença estava na escrita: escrevia menos. Este casamento evoluiu como um bom vinho: tornou-se naquilo que já era, mas mais apurado, mais sofisticado, mais complexo

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Outro motivo de inveja: as livrarias. Hoje encontrei praticamente tudo de Sapienza Goliarda, de quem ouvi pela primeira vez falar há coisa de seis meses. Só tenho de esperar que chova - chuva da outra, claro. Esta, para os livros só contribui com as árvores.

E os supermercados, claro. Os queijos. Na Suíça há todos os queijos franceses, mai-los suíços. Em França, só há os franceses. Adivinhem quem fica a ganhar?

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