11.11.20

Vidas, sapatos

Fui a uma loja de vidas usadas e comprei uma. A mais barata, claro, nunca gostei de desperdiçar dinheiro em vidas. Já lá vão mais de quarenta anos, quase cinquenta. De vez em quando troco-a por uma nova (isto é, diferente. Não compro vidas novas, só em segunda mão.) Agora não sei o que fazer. Esta que vivo presentemente está quase nas lonas, mas a verdade é que gosto dela e não me apetece nada trocá-la.

E depois, vejamos: quem é que me garante que a próxima seria melhor? A minha experiência na área da troca de vidas diz-me que ora saem melhores, ora piores. A diferença é que até agora só as tenho trocado quando as que usava já não tinham futuro. Esta ainda talvez tenha. Eu gostaria que tivesse, pelo menos.

Comprar vidas é complicado. Não é como comprar café na casa Flor de Chaimite, em Lisboa, onde o senhor Tavares, tão circunspecto como competente, nos aconselha. Não há muitas lojas de vidas, novas ou em segunda mão. São poucas. Os católicos prometem-nos uma para depois desta, mas é preciso morrer primeiro. Não estou para isso. Os comunistas falavam no homem novo, mas já devem ter visto que é treta, porque nunca mais os ouvi sobre o tema (também já não peroram sobre os futuros radiosos, de passagem seja dito). Tão pouco me apetece entrar agora nessa igreja. Quando comprei a primeira vida vinha sem religiões e mantive esse princípio. As vidas sem fé são mais leves, apesar de depois se  tornarem mais complicadas. Ou seja: estamos sozinhos, cada vez que se trata de comprar uma vida.

Escolher uma nova para substituir a actual é outra das dificuldades. Por mim, uma vida com absinto, coelho de quinta e vinho tinto de Neuchâtel (quem diria...) serviria,  mas sei de antemão que não seria sustentável. Uma vida deve durar um mínimo de dez anos, extensíveis a quinze. Nunca mais, mas não menos. Ao fim de quinze anos vêem-se-lhes os fios, como jeans Levi's usadas. Nestas ainda vá que não vá, mas nas vidas não. Ficam a parecer-se com hábitos. Uma vida vivida menos tempo do que o que deve... Não sei. Nunca experimentei. sempre as usei até ao fio.

Uma vida dura o mesmo que um par de calças e menos do que um bom par de sapatos.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.