23.2.21

Regresso a Lisboa

Devia começar por me apresentar, eu sei, mas sou um rapazinho tímido e nunca penso nisso. Tenho sessenta e três anos, ao longo dos quais fui aprendendo a distinguir o que é bom do que é mau, o que é inutilmente complicado do desejavelmente simples. Por exemplo: gosto de especiarias e em três cidades no mundo sei onde as comprar. Por ordem crescente (da qualidade e variedade das especiarias que encontro) Lisboa, Genebra e Palma. Gosto de azeite: Genebra, Lisboa e Palma. Pão: Palma, Genebra e Lisboa. Café: Genebra, Lisboa e Palma. Livros: Lisboa, Palma, Genebra. Sempre por ordem crescente. A minha vida oscila entre estas três cidades e penso que devia elaborar um bocadinho estas coisas. Matizá-las, por assim dizer. Por exemplo: a primeira vez que comprei pimentão fumado artesanal foi em West Palm Beach. O melhor pão de Lisboa é feito numa padaria francesa do fundo da rua onde agora estou, ao lado da qual há um talho absolutamente excepcional, chamado O Naco. Um dos monhés (o termo é carinhosos e grato nestes tempos de obscurantismo, se por acaso) tem especiarias bastante boas - não chegam às do Cristian, é verdade, mas são boas. No fundo, preciso de muito pouco para perceber que a pertença é isto: um polícia que manda parar o tráfico todo para eu avançar com a minha bicicleta (era sistemático, há uns anos, no Príncipe Real), saber onde comprar pão, azeite e vinho, carne e especiarias - no mercado da Ribeira comprei uns orégãos que são a prova seca da existência de Deus e na rua do Arsenal uns cominhos que cumprem a mesma função, mas em pó. Bebo un gin enquanto oiço Bruce Springsteen e «falo» com uma jovem de quem aprecio as dúvidas, os devaneios, a quête. A vida é - ou melhor, devia ser - esta conjunção simples de um bom azeite, boa música, o caril de peixe e camarão que daqui  pouco vou começar a fazer. Não devia incluir governos incompetentes, revisores autoritários - para quando, os «revisores pela verdade»? - senhorias gananciosas, chuva, frio, confinamentos, uso obrigatório de máscaras e vinho mau.

As pessoas que fazem vinho merecem um lugar no céu, à direita de Deus Pai - com excepção, claro, das que fazem vinho que não presta. Essas devem ir para o Inferno. Na verdade, isto é extensível a tudo: que castigo dar a quem faz mau pão, por exemplo (refiro-me a castigos a sério, não àquela coisa simples de não lhe comprar o que fazem)? E o azeite, aquele azeite que me espera em Palma, o melhor do universo, mesmo incluíndo a possibilidade não despicienda da existência de vários universos, paralelos ou divergentes. 

Bom, começo a divergir do objectivo inicial deste post: apresentar-me, explicar que sou um gaiato simples e que estou feliz por estar de regresso a Lisboa, pela razão simples de que por muito que goste do Porto - gosto - aqui sei onde comprar pão e outras coisas.

(Não menciono sequer o prazer exaltante que é ver bem sem óculos, porque isso aconteceria onde quer que estivesse.)

Adenda: não mencionei outro prazer simples: pedalar nesta cidade, seja na Coluer, pesada e confortável, sentado mais direito do que o Infante D. Henrique no Padrão dos Descobrimentos; ou deitado na Vitus, todo inclinado como se me preparasse par passar a barreira do som. Amanhã vou buscar a Coluer, de que já aprendi a descer quando a calçada do Combro se empina demasiado. Numa bicicleta assim pedala-se direito e dignamente. É a cidade que se move sob as rodas e não nós quem se propulsiona penosamente nestas ruas mal pavimentadas (a Vitus não as suporta e tem razão).

Sem comentários:

Enviar um comentário

Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.