12.3.21

Diário de Bordos - Lisboa, 12-03-2021

Jantar com A. e namorada, herança da sua adolescência. Aos dezasseis anos somos muito mais sábios do que pensamos. Depois convencem-nos do contrário e passamos o resto da vida a tentar esquecer essa sabedoria, substituindo-a por outra, que não passa de  um ersatz. É preciso chegar à idade madura para reencontrar a verdadeira sageza.

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Regresso a Hildegarde, com quem comecei a soirée. Os ciclos fecham-se, quer durem três horas quer trinta anos.

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Começo a antever o fim da minha estadia em Lisboa. Não há maneira de me habituar a este amor não correspondido. De todos, é o único ao qual não me habituo, que não aceito. Gosto de Genebra, amo quem lá tenho, mas não é comparável a Lisboa, cidade que amo e continuamente me rejeita. Perpétuo amputado: aqui deles, lá daqui.

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O frango com banana-pão ficou bom e compensou largamente o trabalho que me dei. Cozinhar é uma forma de me relacionar comigo e de me dar aos outros. Não há entropia, melancolia ou  depressão que vença esta combinação de caos e generosidade: comei e bebei, esta é a minha desordem, este é o meu amor, estas são as horas de mim que são vossas, para vós. (Parágrafo influenciado pela Hildegarde, é preciso dar desconto. Ou contexto, quem preferir.)

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Consegui finalmente furar o bloqueio. Questão somática, simplesmente. Enfim, quase. Mas a verdade fica: sobrevalorizamos a mente. Devíamos olhar mais pela carcaça e preocuparmo-nos menos com  mona. (Monólogo em modo majestático.)

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Esta música atravessa-nos como atravessou os séculos. Somos feitos de poeira, nós e o tempo. Música que vai para «aquele ponto, exterior ao mundo / para onde tendem as catedrais.» De onde vem? Desse mesmo ponto. Ciclo que se fecha ou nunca se abriu.

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