24.4.21

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 24-04-2021

Cheguei a Palma no domingo, fará amanhã uma semana. Terça depois de almoço apanhei o que suponho tenha sido uma intoxicação alimentar que me deixou de rastos e de cama até quinta. Sexta e hoje convalesci. A este ritmo, amanhã estarei bom. Espero que sim: fiz um chilli con carne e não me apetece nada não lhe poder tocar.

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A coisa foi violenta. Como esta, não tive muitas até hoje. De cama, incapaz de ler - nem recitar o alfabeto conseguiria, se tentasse - deu-me para revisitar os meus episódios de conflitos graves com a carcaça. Foi sol - ou chuva? - de pouca dura. Quero que ela se lixe, a carcaça. A única novidade desta é que fui duas vezes ao centro de saúde, que fica a duzentos metros da «casa» onde agora estou (aspas porque chamar casa a isto é um excesso de generosidade ou de falta de vocabulário) - e onde estarei mais três semanas, portanto mais vale habituar-me já. O trabalho no P., que tinha laboriosamente recomeçado, parou. Eu também. Parou tudo, claro, menos o meu estômago, que lutava denodadamente contra um bicho qualquer que não reconheceu.

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Palma está ferida, magoada, mascarada, semi-fechada, mas lá vai resistindo, à boa maneira do Mediterrâneo. Ontem fui, pela segunda vez, jantar clandestinamente a um restaurante. Desta foi um pouco mais caricato, porque o homem - um francês - tinha a janela fechada por causa  da polícia mas manteve uma das portas completamente aberta. Qualquer agente que passasse e ohasse lá para dentro ver-me-ia - e ao outro cliente - de seguida. Suponho que a polícia deve estar a aplicar as  regras com alguma flexibilidade. Recentemente, a associação dos restauradores fez um «ultimatum» ao governo. Assim mesmo: «ultimatum». 

O governo cedeu - não sei se cedeu ou se já a tinha preparada - com uma «medida» que me faria rir, se estivesse em condições disso: alargou a hora de fecho para as dez e meia da noite, mas manteve a obrigação de fecharem entre as cinco e as sete da tarde. Cada vez mais isto tudo me parece um daqueles teatros de marionetas em que é tudo a fingir, toda a gente sabe que é a fingir e toda a gente finge acreditar (tenho uma certa pena de quem acredita mesmo, mas isso é outra história. Prefiro ser governados por desonestos a sê-lo por burros). Continuo a não acreditar em desígnios escondidos - penso que os governos estão numa situação em que não podem simplesmente voltar a trás e dizer «Desculpem, meus senhores, mas isto tudo não passou de um gigantesco lapso. Esperamos que continuem a votar em nós nas próximas eleições» - mas a verdade é que compreendo muito bem quem não partilha esta crença na vastidão da incompetência, dos interesses imediatos - os laboratórios e toda a cadeia de produção de testes está a fazer-se des couilles en or, como dizem os gauleses; para não falar na comunicação social, que essa não são só os tomates, mas também os egos - dos acasos, das coincidências de anomalias meteorológicas com a porcaria do vírus. Cioran dizia «Só os abúlicos devem ter acesso às ideias. Mal os atarefados se apoderam delas, a doce confusão quotidiana organiza-se em tragédia». (A citação é de memória, mas não anda muito longe do original.) Mais uma vez estava podre de razão, o velho Emílio. Como quando dizia: «Somos todos uns farsantes. Sobrevivemos aos nossos problemas.»

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Por falar em Cioran: hoje vi um artigo no Monde a fazer um frete ao governo. «Que sim, que as máscaras funcionam, que sim, as vacinas  também». Não sei se isto não será o sinal de que batemos no fundo e que um alarme para a comunicação social vai em breve começar a apitar estridentemente. Le Monde  fazer fretes a um governo de direita? É como ver o Avante defender uma política da IL, não é?

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