26.7.21

Transparência

Vivo num canto da casa, o canto menos visitado. Como num canto da mesa, durmo num canto da cama. Ninguém me vê, não vejo ninguém. O mundo exterior chega-me filtrado pelas paredes, pelos espessos cortinados, pela vontade - ou falta dela - de o ouvir. Oiço a música de há cinquenta anos, ou mil anos, às vezes mais, raramente menos. Como a comida do dia, a que compro no mercado ou me chega por mão amiga, se bem desconhecida. O meu mundo é este: paredes, cortinados pesados, vendedores do mercado, as páginas dos livros para os quais olho sem ler. Já mal sei ler, de resto. Mal vejo, quanto mais ler! A luz chega-me esbatida, como se o mundo fosse feito de nevoeiro. Às vezes ocorrem-me crises de optimismo incontrolável, de que este «como se» é exemplo. Como se o mundo fosse nevoeiro... Que queres tu que ele seja, paspalhão?

Troquei a solidez pela solidão. Isto tem de ser mais bem explicado: troquei a solidez do mundo exterior pela solidão do interior? Não me parece. Estar sozinho não é o mesmo que estar só. De toute façon, on s'en fiche. Qu'est-ce que j'en ai marre de toutes ces explications! Qu'elles aillent se faire foûtre, les explications. Em breve não terei palavras, ficarei reduzido aos sons e à luz. Agrada-me a ideia de perder palavras como a outra espalhava pedras no caminho de ida para saber o de volta. Talvez sejam as palavras que me salvam a solidão, que ma tornam suportável? Como o sumo de limão salva a mayonnese? Como um laivo de humor salva o amor, um seio um corpo? Não sei. Pouco me interessa, na verdade. Estou sozinho nos meus cantos - casa, cama, mesa, música, palavras. Encaixam-se uns nos outros como algumas vidas.

Da janela vejo flores e outra parede. (Afinal tenho uma janela sem cortinados.) De mim, não vejo nada: sou transparente. O mundo passa por mim e não o vejo. Fica uma consolação: ele tão pouco me vê.

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