4.9.21

Diário de Bordos - Almeria, Andaluzia, Espanha, 04-09-2021

Passeio por Almeria como um cego por um labirinto de rosas: vim a esta cidade pela primeira vez há quarenta anos e desde aí tenho vindo esporadicamente. Não a conheço - hoje tive de perguntar onde é o casco viejo (à vinda descobri sítios dos quais me lembrava claramente. São rosas, senhor). 

O sherry é sublime. Não pergunto a marca: devemos resistir à tentação de tudo saber, de tudo cobrir com palavras.

Continuo a ver montes de gente com máscara na rua. Também da tentação de me chatear fujo, feito cobardola das emoções. Se querem parecer idiotas - ou mostrar que o são - pareçam, mostrem. Só me aborrece que tantos sejam jovens. Que fizemos nós desta geração, nós agora velhos? Como nos transformámos de revoltados reichianos, debordianos, marcusianos em carneiros hiper-protectores, de bondade e medo hipertrofiados, carneiros a fazer carneiros?

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Estou no interior do bar do Hotel da Catedral. Se fosse sensato, alugaria aqui um quarto para dormir a noite, envolver-me-ia em sherry cujo nome ignoro e dormiria sem pensar em mais nada senão no meu próprio sono, sono que se enrola em sono. Mas não só não sou sensato como também sou um teso, apesar da gorja generosa e inesperada que recebi hoje. Quase uma semana para vir de Portimão a Almeria. Navegação soberba, apesar do excesso de motor, clientes impecáveis... «Nem parecem portugueses», penso e ao mesmo tempo «tenho de deixar-me destas fronteirices idiotas. Já tens idade para saber que não há portugueses, franceses ou espanhóis, há pessoas. Além de que tu gostas dele, desse teu povo que não te compreende e te regurgita cada vez que tentas fazer parte dele mas ao qual reconheces qualidades  (e não és o único, de passagem seja dito)». Algumas pessoas são porreiras e outras não, como os pimentos de Padrón. Não tem nada a ver com os passaportes, por mais que eles - os passaportes - tentem fazer-nos crer que sim.

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Será o meu cansaço solúvel em sherry? Sim e não: há muita vida para lá do sherry. Há a calma do bar, de que sou o único cliente (no interior. A esplanda está cheia); a sobriedade da decoração; há a solidão, a deliciosa, doce, apaziguante solidão.  Há o sono, que me espera a bordo, sorridente e de braços abertos, como se me dissesse «Vês? Não precisas do hotel para nada».

[Tinha razão.]

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Roupa velha:

No porto de Soller os restaurantes de que gosto ou me sugerem estão cheios. Meti-me num táxi e venho para Soller. O restaurante que o taxista me sugeriu também está cheio, tão cheio de gente como eu o estou de fome. Arranjo outro, ao acaso. O início não augura nada de bom: não tem palos e de vermutes só Martini. Vamos ver: quantas refeições começam mal e acabam bem? Muitas, mais do que as que posso contar.

Ainda é segunda-feira e já estou cansado. Verdade seja dita, não tenho muitas razões para isso. Os clientes são muito bons, uma família de franceses, judeus «semi-praticantes» (aspas porque cito), pai, mãe, duas miúdas de doze e dezasseis anos. Amanhã chega o filho de dezoito, vem de Chipre. Ele é matemático [não é, é engenheiro], deve trabalhar em finanças [é chefe de uma empresa familiar]. Ela, médica. Falamos de Covid, claro, uma conversa civilizada, polida, educada, interessante. Tristes os tempos em que se tem de assinalar ter-se conseguido manter uma conversa educada sobre opiniões divergentes. O único momento de ligeiríssima exaltação foi entre a senhora e ele. Ela é visceralmente contra a vacinação das crianças, não gosta de ouvir dizer «os números, etc.» que o marido usa amiúde, acha que não se deve fazer experiências com crianças e menos ainda se essas crianças forem os filhos. Disse-lhe que na minha opinião aí os governos tinham atravessado uma linha vermelha e que a maioria das pessoas reagiria como ela. «Talvez não», respondeu, vejo agora que cheia de razão.

(Porto de Soller)
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A carcaça está a reagir bem aos comprimidos todos que lhe dou a tomar [mentira]. Pareço uma farmácia ambulante. Já não aguentava as dores nas costas. Ando inquieto: daqui para a frente terei de andar de comprimidos às costas?

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São sete e meia da tarde. A luz fica densa e cor-de-laranja. A maioria das pessoas do dia foi-se embora, mas ainda há algumas a chegar, raras. Chegam também dois ou três veleiros, esperando encontrar alguma calma na cala agora quase deserta de nós. Espero que a encontrem e que as minhas histéricas não lhes defraudem as expectativas. Hoje apareceram-me de ar contrito. Uma delas - por acaso, a minha favorita - perguntou-me se estava zangado com elas. Perguntei-lhe porque o estaria? «Por causa do desastre». Respondi-lhe que não, claro. «Não sou vosso pai».

A verdade é que não me interessam. Resta saber se por questões de estética - a boçalidade é feia - se por ciumes, inveja, dor de cotovelo. (A pergunta é retórica, claro, mas não tenho nada contra a retórica.) As duas da semana passada eram mais calmas (estavam com os pais) e ainda mais pirosas. Alguém devia explicar às senhoras que um calção de bikini a entrar pela raia dentro passa a fronteira do bom gosto e é capaz de desentesar um elefante. (Refiro-me à peça de roupa conhecida por fio dental, designação abominável s'il en est.)

O cor-de-laranja invade tudo, à medida que o Sol se afunda por detrás das árvores. O azul do céu, o verde das árvores, o branco das rochas e a cor indefinida da água ligam-se como se o cor de laranja tivesse desbotado.

(Cala Torqueta)

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