19.9.21

Diário de Bordos- Lisboa, 19-09-2021

Estou numa esplanada a beber vinho tinto fresco e a apanhar sol quente. O vinho custa oitenta cêntimos o copo e é honesto, sem pretensões mas correcto. O Sol não custa nada, antes pelo contrário: recebo dele mais do que lhe dou. Costumo dizer que a saúde é a única área da minha relação com o meu país em que sou claramente o ganhador, mas não é verdade: também fico a ganhar na minha relação com o clima e com os preços dos copos de vinho (isto é uma sinédoque, se por acaso). Agora poderia também dizer que fico a ganhar em relação às mulheres: o país tem-mas dado claramente melhores do que eu tenho para troca. Enfim, isto é um tema delicado - ou pelo menos sujeito a variações tão labirínticas como as Variações Mandé que agora oiço, cheio de sol, amor e vinho tinto, tudo coisas que recebi do meu país e não retribuí à altura.

As Mandé Variations levam-me de passeio, de divagação em divagação. É um dos meus discos favoritos, já aqui o tenho dito muitas vezes. Não é de música africana, é música, ponto. Prova provada - como se fosse necessário - de que a música é como as pessoas: não tem passaporte. Classificá-las por origens é uma facilitação de linguagem e de raciocínio e como tal deve ser tomada. Não mais. Não há chineses: há pessoas que nasceram na China, ou são de ascendência chinesa. Não há portuguesas: há uma mulher que eu amo e nasceu em Portugal, nos Açores, ilhas encantadas s'il en est.

Uma mulher que eu amo e esse amor vai subido como sobe a maré. Qual maré, pergunta o marinheiro em mim: a do Mont Saint Michel, mais rápida do que o galope de um cavalo? Ou a do Mediterrâneo, invisível? Fiquemo-nos pelas marés abstractas, «normais», semi-diurnas. Fiquemo-nos pelos amores concretos, os que dia a dia sobem como sobe a maré abstracta. Fiquemo-nos pelo amor, o que não tem passaporte nem carimbos nem renovações: é uno e sempre uma viagem, com a Lua por companheira, como as marés.

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Antes do sol e do vinho tinto fresco o que me apetecia era uma imperial e um croquete na Portugália. Felizmente pediram-me o «certificado» e face à sua ausência não me deixaram entrar. Fiquei a ganhar com a troca - o meu país é generoso, no fundo - mas lembrei-me da minha adopção da bicicleta como meio de transporte. Foi em Genebra, cidade que tinha um grave problema de tràfego automóvel e resolvera resolvê-lo. O método escolhido foi simples: tornar insuportável a vida dos automobilistas. É o que as nossas autoridades estão a fazer com estas regras: forçar as pessoas a vacinarem-se pelo cansaço, já que os benefícios das «medidas» são risíveis e os malefícios da doença são pouco visíveis, contrariamente aos problemas de trânsito automóvel na cidade de Genebra. 

Haveria talvez de fazer um distinguo entre os problemas automobilísticos de Genebra e os «problemas» ligados ao vírus Sars-CoV-2 (as aspas não são um acaso): pergunto-me (e já agora pergunto a quem sabe) quantas das dezoito mil pessoas que até hoje morreram com Covid em Portugal teriam morrido no prazo de um ano, sem vírus? Talvez este não tenha passado de um catalisador, um acelerador, não? 

Claro que é preferível morrer um ano mais tarde a morrer um ano mais cedo, não ponho isso em causa nem um segundo. A questão não é essa. É: o preço que pagámos todos (e ainda estamos a pagar) é proporcional a essa vantagem? Justifica-a? Respectivamente: não e sim, mas só muito parcialmente. Eu estou disposto a ceder uma parte da minha liberdade para que o meu vizinho viva mais seis meses, sem dúvida. Não estou é disposto a pagar tudo o que paguei para isso - tanto mais que as autoridades poderiam ter tratado melhor do meu vizinho velhinho, em vez de concentrar a sua fúria benfeitora em mim, homem são e sem grande temor da morte (não por valentia, por estatística).

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