11.4.22

Diário de Bordos - Porto, Portugal, 11-04-22

Em condições normais não teria entrado no Thamel Restaurant & Cocktails nem com uma pistola encostada à têmpora. Não tarda o Porto estará como o resto do mundo ocidental cheio de bio, organic, gourmet, fine food, fusion e por aí fora. Não há razão nenhuma para acelerar o que já de si é inevitável. Mas hoje as condições não são normais (apesar de tão pouco serem raras, infelizmente) e tinha a pistola da fome e a metralhadora da falta de paciência apontadas uma à têmpora e a outra às pernas, de maneira entrei no supra-mencionado Thamel, atraído pelo preço dos mo-mo, cinco euros e - comprovei posteriormente - bastante bons. Claro que a conta final foi substancialmente superior, prova (como se fosse necessária) de que o melhor momento de um preconceito é quando morre e é substituído pelo seguinte.

Do Thamel vim ao bar Pipa Velha, onde amanho estas linhas. Não tem natas frescas. Já nenhum bar as tem, com a possível excepção do Procópio, que não é bem um bar propriamente dito, é a sala de espera para um dos paraísos ou um dos céus ou do que quiserem. De modo bebo um LBV, simultaneamente caro e barato para a função que lhe proponho: manter-me acordado o tempo de... Enfim, pouco importa. Duas coisas a reter: o restaurante Thamel (um dos seus cocktails é bom, apesar de se chamar Dancing Monk)... Não interessa. Ao meu lado estava uma senhora sozinha que lia o seu telefone enquanto comia. Trouxe-me à memória os tempos em que fazíamos a mesma coisa com jornais, livros ou revistas. Uma modernice que se queira imprescindível precisa apenas de prolongar o passado: fazer o que sempre se fez, de uma forma mais prática, mais leve

Uma das paredes do bar Pipa Velha está coberta de posters de espectáculos; a outra, em face, de retratos (medíocres) de artistas e actores famosos. O senhor que fez isto quer visivelmente garantir aos seus clientes que estão a caminho da intelectualidade, de se tornarem famosos. Estão no sítio certo para isso. Estão. Não sou famoso por coisa nenhuma, nunca o fui nem serei, não sou nem quero ser artista ou intelectual e apesar disso tudo sinto-me bem aqui. Gosto da música - rock - da decoração clássica (estou de costas para os retratos), meio pub inglês meio irlandês, das madeiras, do arco de pedra, de tudo incluindo ficar muito perto do hotel San Marino, a minha casa, refúgio, abrigo no Porto.

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Objecção à modernidade: a falta de natas. O Irish coffee saiu de moda. O único sítio onde se pode beber um decente é no já mencionado Procópio.

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«Modernices»... Que bizarra relação tenho com a modernidade, eu que sempre disse (às vezes ironicamente, verdade seja dita) il faut être moderne. Agora escolho as «modernices» como escolho as cerejas do prato que a dona da casa generosamente traz para a mesa. É mal-educado? Sem dúvida. Privilégios da idade.

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Sinto-me um funâmbulo com uma enorme vara num arame fininho por cima de um abismo. Para um lado, a solidão. Para o outro, a não-solidão. O referencial é sempre ela, a solidão. Presente ou ausente, é ela que dá nome ao abismo sobre o qual avanço, balanceio, me desequilibro e me equilibro. Instável o equilíbrio, lento o avanço. No fim do caminho ela ganhará. Ganha sempre.

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