18.8.22

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 18-08-2022

Um gajo sabe, daquele saber difuso feito da mistura de zeitgeist, leituras diversas et al. que esta coisa de viver «fora do sistema» não passa de um voto piedoso. O «sistema» sabe mais sobre mim do que eu, muito provavelmente. Porém, de vez em quando o saber difuso transforma-se em saber concreto, concreto como cimento ou vento de vinte nós mesmo no bico da proa. Hoje foi um desses dias.

Já me tinha sido dito ontem que a Western Union impõe um limite de envio de dinheiro e que não podia enviar o que queria porque excedia esse limite. Hoje voltei lá para enviar uma quantia menor. A resposta foi a mesma: niet. Limite excedido. Fui a outra loja de outra companhis (a Moneygram, para quem estiver interessado) e não consegui enviar porque me faltava um documento de identidade espanhol. Como sou teimoso, resolvo experimentar a) a RIA e b) um estabelecimento especializado. Explico a situação ao jovem que me atende, ele confirma que a minha escolha da RIA é adequada e fazemos a transacção. Esta feita, pergunto-lhe porque raio de carga de água a WU impõe tal limite. «Não é a WU. É o Banco de Espanha. E não é só pela WU, é por todas as empresas de envio de fundos. Com a RIA conseguiste porque excedeste de pouco o tal limite, mas se tivesse sido mais, provavelmente tão pouco terias conseguido. O limite aplica-se a todas estas empresas.»

Um gajo dá um pum e alguém num escritório longínquo tapa o nariz. Não se vive «fora do sistema». Vive-se «menos dentro do sistema». Diga-se de passagem que o meu maior desejo é que o «sistema» impluda, mas isso não vai acontecer antes de eu morrer, aposto. Até lá, continuarei aqui pelas margens, um pé fora outro nem por isso. E o Banco de Espanha que se divirta com as minhas transacções.

Se em vez de trabalhar traficasse droga (o que também é um trabalho, de resto) aposto que teria muito mais facilidade em transferir a massa.

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Palma está cheia a abarrotar, rebenta pelas costuras. Venho escrever para o meu petit Paris e as mesas estão todas reservadas. Felizmente deixam-me ocupar uma delas até à hora da reserva. Quem fica a ganhar são os meus leitores, claro: tenho de poupar nas palavras, nos disparates.

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O calor diminuiu, o que me deixa feliz e preocupado. Não é costume sofrer tanto com o calor e receio que isso não se deva a um burocrata qualquer, mas que seja uma influência directa da minha data de nascimento. Sobretudo aquela parte que tem quatro algarismos: não há cura para isso, tal como não há para os summertime blues.

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O rapaz que me serve no Antiquari é novo (nos dois sentidos so termo) e não me conhece. Deixo uma sugestão aos donos de cafés, bares, restaurantes e similares: criarem uma medalha para clientes habitués, como têm algumas páginas no FB. Isso permitir-nos-ia algumas brincadeiras, como por exemplo insistir em que ele continue a servir o vinho e a não parar na medida certa. Brincadeira inocente, claro, mas só passa se um gajo for conhecido de quem o está a servir. Se essa pessoa ignorar a quantidade de copos diversos que um gajo já ali consumiu, pensa erradamente a respeito do tal gajo. Na ocorrência eu.

Fica a sugestão, messieurs les cafétiers.

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Tudo indica que o transporte de La Rochelle (ou Sables d'Olonne) se vai concretizar. Ou seja, agora tenho dois relógios a correr ao contrário: a chegada do meu neto & séquito e a partida para França. Dez dias de mar, sem paragens previstas a priori (excepto a da Bodeguiya, obviamente. Por sorte fica mesmo ao lado de Gibraltar). Duas felicidades. Pergunto-me qual será a terceira (ainda não tenho a certeza da segunda... se isto não é excesso de optimismo não sei o que é. De realismo não é de certeza).

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Buvons un coup, buvons en deux 
A la santé des amoureux 
A la santé du Roi de France, 
Et merde pour le Roi d'Angleterre, 
Qui nous a déclaré la guerre.

A canção continua, é muito bonita, uma canção de marinheiros com mais de três séculos. Hoje só me apetece substituir amoureux por vivants, mas perder-se-ia a rima e deixo-a estar como está. Cantá-la-ei quando montar na minha bicicleta e descer a Costa de sa Pols a toda a velocidade, como se fosse um corsário (ai de quem confundir corsário com pirata. Espero que não esteja cheia de turistas).

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Porque leva tanto tempo a aceitarmo-nos como somos, Mr. Darwin?

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O Ca na Chinchilla fechou «definitivamente» (aspas porque cito) e faz-me uma falta cruel. Igaul à que ainda hoje me faz o café Tati do Cais do Sodré. As coisas mudam, nem sempre para melhor. Não é preciso ser muito crescido para saber isso. Mas há mudanças cruéis, inúteis, «gratuitas». O Café Tati e a Ca na Chinchilla estão nessa categoria. Lisboa e Palma não são as mesmas sem esses lugares.

O pior é que eu também não.

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Em Palma não há bons restaurantes indianos. (Nem chineses, de resto.) Hoje vim experimentar o Madras. Fica no Paseig Maritimo, o que já de si é um mau sinal. Ao meu lado sentou-se um jovem casal negro. Ela mais escura, ele mais claro, comme il se doît. Ela faz poses e ele fotografa com o telefone. A rapariga é bonita, tem uma daquelas caras tipo maconde, bantu ma non troppo. Têm pouco mais de vinte anos. São tão desinteressantes que dói. Se fossem brancos seriam ainda mais desinteressantes, não? Sim. Tento descobrir que língua falam, mas ainda não consegui. [Adenda: Francês, claro.]

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