7.2.23

Mortos, memória

"Aos domingos, iremos ao jardim. Entediados, em grupos familiares, 
Aos pares, 
Dando-nos ares 
De pessoas invulgares, 
Aos domingos iremos ao jardim
..." (Reinaldo Ferreira)

É domingo, mas não vamos ao jardim. Vamos ao museu, ver os mortos todos que tens na memória, tão mortos que nem de formol precisam. Basta-lhes uma ligeira brisa para os conservar. Por vezes agitam-se, tanto tanto que até ressuscitam. Depois acalmam e voltam para os seus lugares. Tão invulgares que eles são, esses teus mortos. Sempre a pisar o risco. Nunca sabes quando despertará um - o de Coimbra, por exemplo, que é o mais irrequieto de todos. Mas olha que o de Lagos ainda se mexe muito, para um morto. O de Paris também. Vamos olhar para esses mortos todos, se tiveres a gentileza de nos franquear as portas da tua memória. Podemos até convocá-los para uma sessão conjunta, não achas? Pô-los a conversar uns com os outros,  calmamente, sem grandes parangonas. Ainda saberão falar? Talvez agora só murmúrios, olhares arrependidos, quase dizer como o outro "Confesso que morri" e acrescentar "por ti, por nós".

Não sei. Os mortos são tímidos, recatados, não gostam de muita exibição, mesmo se de vez em quando se esquecem do que são. Deixemo-los cada um no seu canto: Lisboa, Coimbra, Porto, Paris, Caraíbas, Burundi, Filipinas... Essa memória parece um atlas de geografia. Se fosse comida derramar-se-ia pelo globo e cobri-lo-ia de um líquido viscoso a pingar gota a gota no vazio. Como iogurte grego. (Chiu, cuidado, não despertes o morto de Atenas.) Aos domingos iremos à memória, dando-nos ares de pessoas amnésicas.

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