4.7.23

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 04-07-2023

Têm sido complicados, os dias; e se quisesse ser honesto diria as semanas, os meses. Não quero. Os dias bastam-me, tal como basta dizer que quando cheguei a Palma em Abril pensava que hoje, quatro de Julho, estaria a chegar a Blanes. Não estou. Sinto-me vítima de uma injustiça diabólica, mas quem não se sentiria assim nesta sequência de merdas? As tribos sujeitas à punição das canhoneiras de Sua Majestade não se sentiam muito diferentemente, quando as balas dos canhões desabavam sobre elas, aposto. É como se o diabo tivesse decidido dar-me um passaporte novo, de uma terra chamada Inferno. Não deu. Sou português, com tudo o que isso tem de bom e de mau. Já lá vamos. 

Em troca venho à Rambla ver as flores, as que estão nos stands e as de duas pernas que passam à minha frente para um lado e para outro. As primeiras enchem o espaço de cheiros; as segundas enchem-me a vista - o que por enquanto resta dela, há-de melhorar - de sábias sensações. Sábias de saborosas e de sapiência. Não há homem digno dessa condição que não se orgulhe dos seus prodígios manuais e passados. Roald Dahl tem um conto sublime sobre o tema. Espero que não tenha sido censurado.

A Ca na Chincilla fechou e o lugar que a substituiu está fechado hoje «para uma reunião». Vou à do lado, reiterando que um dia terei de fazer a lista dos meus lugares em Palma que fecharam ou desapareceram e das implicações ontológicas desses desaparecimentos. Nesta peço um vermute e uma gilda, ambos aceitáveis, cheiro umas flores e olho para as outras. Tenho pelo menos a sorte de poder reciclar estas coisas em disparates.

A verdade é que ser português tem vantagens: prepara-nos para uma série de defeitos da humanidade - a pequenez, a inveja, a falta de visão (a outra) e para algumas qualidades imprescindíveis: a resiliência, o desenrascanço, a poesia, a capacidade de conviver com o fado aceitando-o quando não há alternativa e resistindo-lhe quando há.

Vou jantar à Infame com o V., que está em Palma. Enquanto espero venho à Primavera beber um copo e transcrever os disparates, duas actividades que se coadunam facilmente. A música é infame, mas penso no jantar que aí vem (ou mini-jantar, mas isto não é um confessionário) e finjo que não oiço. Já gostei muito deste sítio, quando ainda se chamava Índico. Mudaram-lhe o nome, o resto continua igual. Não me lembro de como era a música. Devia ser melhor. Antigamente tudo o era, porque não aqui também?

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O diabo não me deu um passaporte novo mas deu-me um traveller da escota da grande que faz a mesma coisa. Hoje chamei o Carl B., ver se com uma contraplaca em aço inox resolvo aquilo de vez e mando o diabo ao diabo. 

Falava com ele (Carl), um inglês jovem e redondo - metade de gordura e metade de músculos - e pensava que com a experiência deste refit estou pronto para qualquer um. Desde que não me apaixone pela merda do bote, claro. Fazer isto num barco que se adora é uma tensão permanente. Se não se amar a embarcação, o n de tensão cai, não cai? Aposto que sim.

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Acabei a recensão ao livro do Alberto Gonçalves e mandei-a ao PAV. O homem não merece coisa tão fraca, mas enfim. Pode ser que daqui a uns anos me pareça boa.

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O empregado do Primavera não só escolhe música abominável mas também a assobia enquanto trabalha atrás do balcão, fazendo um ruído infernal com a arrumação de pratos e copos. O diabo está em todo o lado, como Deus e a esperança, essa vaca.

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