23.12.23

Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 22 e 23-12-2023

22-12-2023

Detesto a relação estúpida que os portugueses têm com o saber. Há muitos anos, um então jovem professor de História na faculdade de letras de Lisboa (corrijam-me se estiver enganado, não me lembro da faculdade) chamado Daniel Perdigão (ditto) dizia-me que somos o único povo que tem um ditado que menciona os «burros carregados de livros» e que despreza os «doutores da mula russa». Eu próprio fui vítima disso aquando da minha breve passagem - sublinho breve - pelo esquerdismo. O meu Pai, que me incentivara toda a vida a ler, desde a mais tenra infância, acusava-me de «cultura livresca». Como se só o saber empírico contasse. Paradoxalmente, a mesma desconfiança se aplica a quem tem muita experiência numa determinada área. Qualquer coisa que ele diga tem sempre uma razão por trás. Um interesse, uma causa escondida. Não é «o que é que este gajo sabe?», é «o que é que este gajo quer?». Não se valoriza o saber e portanto faz-se tudo o que se pode para não o pagar.

Lembro-me sempre, quando converso com portugueses, daquela máxima não sei de onde: «se você acha o saber muito caro, experimente a ignorância».

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O Mango Bay está transformado numa pálida sombra do que foi. Acontece. A entropia é a norma geral da vida, se bem por vezes abra excepções. 

Não acredito naquela treta do não se regressar a um lugar aonde se foi feliz. Aqui no Marin fui feliz, infeliz, assim-assim e tudo o que lhes fica de permeio. O Mango não é o que era? Paciência. A entropia funciona, mas a neguentropia também. Outro aparecerá.

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23-12-2023

Não é difícil extasiarmo-nos com esta mistura de planteur, ti'punch, calor e simpatia da senhora que me serve isto tudo com calor, se bem do outro, do humano. Vir a Fort-de-France na véspera de Natal foi o erro que eu esperava. Uma hora e vinte para fazer um trajecto que normalmente se faz em metade do tempo, mais vinte minutos para estacionar, ruas pejadas de gente. Já as compras de Natal foram despachadas num abrir e fechar de olhos, se bem desconfie que os jovens destinatários dos presentes venham a pensar que foi mais com eles fechados. Amanhã veremos.

[Pelo sim pelo não completei-os com outros comprados aqui no Auchan, que tem uma secção de brinquedos, creio que «especial Natal». Não sei. Amanhã veremos as reacções. Estou pronto a apostar singelo contra dobrado que se vão esquecer deles no aeroporto.]

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Desta vez almoço no mercado. Chez Carole, para futuras referências (as accras são óptimas, o colombo nem por isso). Carole faz-me incrivelmente lembrar a Anouk R., uma Anouk que tivesse ficado um bocadinho mais no forno e tivesse sido esticada em altura. O mesmo fácies e a mesma atitude, a mesma electricidade. Está sozinha no restaurante, faz o serviço e a cozinha, serve-me um planteur correcto e um ti'punch com açúcar em vez de xarope de cana. Reclamo e aponta para a garrafa de rum que pôs na mesa: «sou a única que ainda põe a garrafa na mesa» (a garrafa estava quase vazia). Não me surpreende muito, de passagem seja dito. Já em Palma o Aurélio deixou de pôr garrafas de vinho com o menu. «Eles bebem-nas todas», explicou-me. Carole diz a mesma coisa.

Isto é: voltamos a oitenta e quatro, quando se comia pessimamente nesta ilha. Há doze anos comia-se invariavelmente bem. Agora há que escolher. A teoria do pêndulo a funcionar. 

Carole e eu brincamos ao flirt. Adoro estes jogos de que ambos saímos vencedores: no flirt só perde quem não sabe que nada há a ganhar se não uma comunicação infra-verbal, uma comunicação baseada naquela magnífica frase que ouvia a bordo da marinha mercante: «ah, se tu quisesses e eu pudesse...» Era sempre dita no sentido homem - mulher. O homem pode, a mulher quer. As feministas deviam fazer umas viagens a bordo de alguns navios, suponho, No flirt todas as combinações são possíveis. A igualdade é total. Ah, Carole, se eu quisesse e tu pudesses... Se eu quisesse e tu também... Se ambos pudéssemos, se ambos quiséssemos... Não aconteceria nada, claro. O fim do flirt é o flirt.

Quando nos despedimos ela oferece-me a mão, não para um passou-bem mas para um toque, para que as nossas palmas se encontrem abertas, como nas carícias. O flirt torna atraente a menos atraente das mulheres, o menos atraente dos homens. Talvez seja isto a vitória: a metamorfose.

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T. está horrivelmente doente há dois dias. Hoje tentei convencê-lo a irmos ao hospital mas não consegui. Pactuámos com um «amanhã, se isto continuar assim». Não me posso queixar: sou igual. Só que agora sei melhor a estupidez que é. 

Infelizmente é daquelas aprendizagens que cada um de nós deve fazer per se.

1 comentário:

Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.