16.5.24

Diário de Bordos - Marigot, Saint-Martin, DOM-TOM França, 15-05-2024

De maré cheia a maré baixa, desta a maré vazia e agora... Agora resta-me esperar que o nível dos mares suba por aí acima, como bombeiro por uma escada de nós. Estou no zero hidrográfico. Subzero astronómico. Não tarda ando pelas ruas de escafandro. Botas de chumbo já as tenho, com o que me custa mexer-me. E óculos embaciados também, cortesia desta porra deste olho direito, que segue o exemplo do esquerdo aqui há uns tempos. A minha guerra com a carcaça tem altos e baixos, como o nível da maré. Feliz ou infelizmente os ciclos não coincidem. Não sei o que seria melhor: tudo mal e tudo bem ao mesmo tempo, ou tudo caótico sempre? Deixo a questão aos filósofos, pensadores e outros frequentadores da taberna do Tio Rijo.

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Nove e vinte da noite e ainda aqui a escrevinhar disparates em vez de estar na cama à procura da melhor  posição para adormecer. É que o problema não é só com a carcaça. É com a electrónica também. O computador está cada vez mais reticente a pegar e tem as portas USB inoperacionais. O telefone demora horas a carregar, apesar de lhe ter trocado a placa de carregamento há pouco mais de uma semana. Cinquenta euros para o galheiro. Já fui reclamar, claro, mas o aldrabão disse-me que a culpa é da humidade do barco. O power bank tão pouco vai bem. Numa coisa dou razão ao filho da mãe que «reparou» o telefone: aquela bátega de água de há uma semana deve ter feito mais estragos do que os que vejo no S. D. 

Se fosse a pôr em gráfico a minha vida obteria uma belíssima imagem do caos. 

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Felizmente tenho os disparates e posso rabiscá-los. É como o óleo que os antigos deitavam no mar para aplanar um pouco as vagas. Punham uns sacos cheios de óleo no costado, com uns furos, e à medida que o navio ia derivando para sotavento o óleo acalmava o mar a barla. Por incrível que pareça funcionava. Comigo é mais as teclas do computador, se bem também estejam a ageniar. O problema da colocação de uma vírgula desvia-me a atenção dos outros, que subitamente passam ao segundo plano.

Abençoadas vírgulas. Bem dizia o Emílio: «Sonho com um mundo aonde se morreria por uma vírgula.» Eu não morro. Ressuscito.

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Para o jantar ia fazer uma salada de spaghetti, mas aquilo ficou tão bom que a comi ainda morna, antes de ir para o frigorífico. O problema é que estou a comer cada vez menos e ainda não aprendi a cozinhar nem para quando comia normalmente. Tenho salada para dois anos, se a comer todos os dias ao almoço e ao jantar e uma vez por semana ao pequeno-almoço. Ia fazê-la com fiambre, mas tinha chouriço a bordo com uma data limite mais cedo e resolvi-me por este. Não que ligue muito às datas, mas a verdade é que detesto deitar comida fora e não me apetece nada correr riscos. Sobretudo porque o frigorífico já ficou desligado algumas vinte e quatro horas quando apanhámos o primeiro arraial. 

Era a comida da travessia. Esta vai ser de avião, outra vez. Porra! Dupla porra!

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O S. D. tem água entre o contra-molde e o casco, quase de certeza. Isto não são barcos para atravessar uma poça de água, quanto mais o Atlântico. Servem para fazer piqueniques aos fins-de-semana com a familia. E ainda há quem se admire de eu ter saudades do «meu» P., que não passa de uma cabana de madeira rústica ao lado desta luxuosa e confortável residência secundária.

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Quarenta minutos ao telefone com a M. Ao princípio era a rainha das vítimas, como de costume. Ao fim estava aguerrida e cheia de força. Vale a pena ouvir meia dúzia de disparates para obter este resultado, não vale? Vale. A S. sempre disse que sou melhor psicólogo do que muitos colegas dela.

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Em resumo: uma merda de uma éoca, salva pela doutora C. D. e pelo meu filho T. Quem é que falava em caos?

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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.