7.5.24

Diário de Bordos - Marigot, Saint-Martin, DOM-TOM França, 07-05-2024

Não pára de chover e apercebo-me de que há quase duas semanas não escrevo no DV, duas coisas que só muito medianamente aprecio. Com a chuva pouco me preocupo, para além da ocasional saraivada de impropérios a ela dirigidos. Não mudam nada, claro, mas pelo menos aligeiro-me. Já no DV penso muitas vezes. Preciso de escrever isto, contar aquilo, como vou pôr isto em palavras?, etc. Depois não faço nada - nem mesmo um palavrão dirigido a mim próprio. Tem havido coisas a mais, é o que é. Os acontecimentos atafulham-se à porta e acabam por não deixar sair nem um, como numa discoteca cheia de gente em noite de incêndio. A analogia não é aleatória: tem sido realmente uma sequência de incêndios, se bem diferentes uns dos outros.

Começo com o Til, um etíope «clandestino» que ia trazer para Lisboa. Aspas em clandestino: um gajo querer uma vida melhor para si e para os seus filhos («Tens filhos, Til?» «Não, mas quero ter.») não é clandestino. De resto, geralmente e salvo situações particulares ninguém é clandestino. Til é um engenheiro mecânico especializado em engenharia automóvel, nobre como todos os etíopes (pelo menos os que até agora conheci), educadíssimo, ambicioso e inteligente. Passou umas semanas a bordo comigo. Ajudava, era prestável, fazia o que eu lhe pedia para fazer. Tinha uma namorada francesa, uma miúda com quem falei ao telefone algumas vezes, impecável ela também. Til dizia-me que o seu sonho era ir para os Estados Unidos, mas como tinha encontrado a H. ia para França primeiro. Largámos do Marin numa segunda-feira porque no domingo estávamos convidados para um almoço em casa de uma senhora etíope que vive em Fort-de-France. Foi um almoço memorável. O marido dessa senhora é um antigo oficial da marinha francesa agora na reforma com quem mantive uma conversa ininterrupta durante as quatro ou cinco horas que estivemos juntos. Dois dos outros convivas eram um casal também misto (a senhora da Etiópia e o marido martiniquês). Ele é padre na igreja ortodoxa etíope. Abriram recentemente uma loja de comida para fora. Na Martinica os restaurantes exóticos têm bastante procura. Desejo todo o êxito do mundo a esse casal encantador, responsável pelas iguarias do almoço - e de parte da viagem, deram-nos um monte delas. 

Percebi que alguma coisa ia mudar porque no dia da nossa chegada a St. Martin não largou o telefone. No dia seguinte desapareceu o dia todo. Regressou à noite, para me anunciar que afinal ia para a Guatemala. Encontrou um cata que o levaria para lá mediante a módica quantia de dois mil dólares. É aqui que a parte feia da história começa. O gajo do cata é um inglês que anda fugido à justiça do seu país porque o governo quer ficar-lhe com os filhos e ele não quer ficar sem eles. Até aqui tem toda a minha simpatia. O governo inglês tira os filhos às pessoas com uma facilidade inaceitável. O que acho igualmente inaceitável é cobrar dois mil paus mais comida e combustível para uma viagem que na pior das hipóteses vai levar dez dias e à popa. Eram dois «passageiros»: havia outro compatriota do Til, mas não se conheciam. O inglês era feroz: não deixou o rapaz ir para bordo enquanto não tivesse a massa na mão. É uma exploração desumana. Mas enfim, ele lá foi, deixou-me saudades e um grande desejo de que a vida lhe corra bem. Merece.

Depois estas tentativas de saída de St. Martin. A primeira estava a cento e poucas milhas e tive de voltar para trás porque fiquei sem doze volts. Apanhámos força sete, o que sendo muito continua manejável. O que estava como raramente tenho visto foi o mar, cavado e caótico. As vagas vinham de todas as direcções, rebentavam-nos em cima, o pobre do S. D. gemia e abanava como se estivesse em cima de um touro daqueles dos rodeos americanos. Viemos a governar à mão, com água salgada nos fundos mas pouco preocupante. Não era muita. No regresso partiu-se o boomvang (em português chama-se burro). Não me preocupei muito com a água. Tratei de reparar a electricidade (Mike Quinn, se um dia algum dos meus leitores precisar de um electricista em St.-Martin. O homem é excepcional, uma personagem. Já lá vamos) e o burro (FKG, uma das melhores empresas de rigging de quem tive o privilégio de ser cliente. Conhecia-os de estadias anteriores. O trabalho bem feito suscita-me uma espécie de sentimento amoroso. Ver alguém trabalhar bem é como ver num museu as peças dos grandes artistas). 

Largámos a uma sexta-feira. Nunca acreditei em superstições e há muito que deixei de as respeitar por piada ou por amor à tradição. Desta vez devia ter respeitado: nessa noite apanhei um dos maiores arraiais de porrada de que tenho memória. O vento nunca passou de força oito, talvez nove às vezes mas a chuva era absolutamente infernal. Parecia que estava a ser lapidado com pedras pequenas atiradas por um monstro furioso e bêbedo. Ficámos sem electrónica e voltámos para trás. Desta vez não esperei para ver se conseguia resolver o problema. Fiz meia volta (o vento já tinha caído mas nem com o motor consegui  virar de bordo ou cambar. Tive de fazer uma série de tentativas até que lá consegui virar por davante, genoa toda enrolada, motor nas duas mil rotações, a aproveitar a descida de uma vaga). Viemos outra vez a governar à mão e com os fundos cheios de água, agora numa quantidade preocupante. O boomjack partiu-se outra vez. A solução para a electrónica foi encontrada rapidamente, a do burro também, falta encontrar a origem da entrada de água.

Procurei por todo o lado, enchi os fundos de papel, sequei e voltei a secar e sequei outra vez, dei a volta ao bote, esquema de passa-cascos e machos de fundo na mão, um a um, metódica e sistematicamente. Não consigo encontrar. Parece que estou a tentar fazer um buraco na parede batendo nela com a cabeça. Não há maneira. Reduzi as hipóteses todas a uma mas preciso de informação da Jeanneau, de maneira estamos aqui à espera de peças (a placa de circuitos da electricidade que deixou de trabalhar na primeira saída e uma caixa para a electrónica que se despediu de mim com um estalido e um cheiro a queimado pouco depois do temporal, por causa da água nos fundos), à espera da resposta do estaleiro e a rezar para que possamos prosseguir a viagem por mar e não de avião. Da primeira vez saímos a vinte e nove de Abril e avançámos três lugares na marina.

E é isto. Personagens - um engenheiro automóvel etíope que sonha com a América e uma espécie de hippie que percebe de electricidade e electrónica como ninguém mas não tem telefone, tem uma barba até ao umbigo, anda descalço e vive numa épave linda, de madeira, na qual já fez mais de duzentas mil milhas mas está num estado de manutenção deprimente - mau tempo e pior tempo a que se seguiu mau tempo de novo, a velha espera por peças, que é o inferno do marinheiro e a ideia - antiga, muito antiga - de que o que não tem remédio remediado está. É só esperar. De algum lado virá a luz.

E acabará a chuva.

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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.