31.7.12

Idiotas de todo o mundo, uni-vos

Um deputado conservador diz que a cerimónia de abertura dos jogos foi "lixo esquerdista"; o Primeiro-Ministro chama-lhe idiota. Alguém consegue imaginar os píncaros de êxtase para os quais uma cena destas enviaria a nossa imprensa, os nossos zorrinhos e os indignados do costume?

Brighton, Reino Unido, 31-07-2012

Começo a conhecer Brighton; não existe. É o cenário de uma peça de teatro da qual o autor não consegue acertar no tempo. O futuro vai ser assim: ruas e prédios antigos conservados como se tivessem sido construídos ontem; "tradicional", "orgânico", "free range" antes de todos os artigos à venda (incluindo cerveja: lager orgânica; ou cabeleireiros: organic hairdressing. Que raio sera um cabeleireiro orgânico? Organic bullshit?); sapatos vegetarianos; lojas de bicicletas a cada esquina, cafés bares restaurantes pubs com comida de tudo quanto é sítio.

Ou talvez não seja o futuro, talvez seja só o presente e qualquer dia acaba e passa a outra coisa, move on, o futuro já acabou, chegámos ao passado, para o qual tudo parece apontar, para onde todos parece quererem ir.

29.7.12

Civilização

Civilização é bom, mas quando é de mais enjoa.
 
(Não é o caso do Reino Unido, que tem a mistura correcta de civilização e - como dizer: liberdade? Não: anarquia.)

Brighton, Reino Unido, 29-07-2012

O Paredão aqui chama-se Madeira Walk. O nome é mais bonito, sem dúvida; mas o trajecto não. Começa na Marina - pelo menos para quem vive num barco - e vai até ao Brighton Pier, um Luna Park sobre pilotis que é fascinante pelo simples desfasamento: que faz um parque de diversões no meio do mar, em cima de centenas daquilo que à distância parecem palitos de fósforo?

Contra o sol poente é lindo, talvez seja a resposta.

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Voltou o inverno. É como se a natureza se esbulhasse toda para nos explicar que ficar aqui não é uma boa ideia; ou que o aquecimento global só peca por tardar.

27.7.12

Ou seja (actualização)

Talvez os portugueses não tenham andado a viver acima das suas possibilidades; mas têm de certeza votado acima delas.

A ler: A crise é fundamentalmente cultural

É mais ou menos óbvio que a questão não é Portugal "ter safa" ou não ter. Os "interesses instalados ... lóbis, ... sindicatos, ... todos aqueles que conseguem condicionar e influenciar as políticas públicas... os pensionistas das políticas ..." estarão sempre "safos", e é isso que conta.

26.7.12

Jantares (Hamburgueres de borrego)

Os trabalhos no D.H. continuam, sempre à volta das mesmas coisas: o circuito de água doce e a corrente de terra (também colei um paneiro e umas guias para os panéis da escotilha, mas isso são bricoles).

Jacques Brel canta sobre uma Isabelle que dorme, o cheiro do verniz invade o salão - envernizei a chapa de contaplacado onde vou pôr a tomada da corrente (e a lata onde tinha o verniz entornou-se. Felizmente era pouco e estava muito diluído), penso no quanto gosto deste barco e no jantar de ontem.

Hamburgueres de borrego
Mistura-se carne de borrego picada com queijo feta, azeitonas picadas (kalamata de preferência, mas isso é para quem é funcionário público e tem emprego garantido) um ovo, azeite, sumo de limão, salsa, coentros, cominhos moídos, sal e pimenta.

Põe-se a mistura uma meia hora no frigorífico e frita-se.

Da próxima vez farei um molho de iogurte (iogurte, alho, sumo de limão, sal e pimenta).

25.7.12

Para que servem os blogues?

Brighton, Reino Unido, 25-07-2012


Cores: começo pelo céu à minha esquerda, de um azul que as lentes polarizadas tornam mais escuro do que realmente é; passo para o branco dos edifícios vitorianos, eduardianos, georgianos (não há um único edifício contemporâneo na beira-mar entre o centro de Brighton e a Marina); continuo pelo castanho da muralha que retem a falésia, o cinzento da estrada no qual uma jovem feia e branca como um espectro faz uma fotografia - ou será um travelling? - em cima de uma skate board; à direita a praia é amarelo escuro, quase castanho. O mar e o céu fecham o círculo, quase da mesma cor.

Tudo isto teria de ser fotografado a preto e branco para se dar uma ideia correcta de como é.

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Foi este povo que "inventou" o vinho do Porto, o da Madeira, o Bordeaux.

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O calor entra-me na pele como se o ar fosse água quente; caminho pelo seafront e diluo-me nele, nas cores, nas pessoas que me rodeiam.

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Estou aterrado numa marina de 1600 lugares; sinto-me como um eunuco numa orgia.

A verdade é que preciso de voltar para o mar; e contra verdades não há factos, nem palavras, nem o que quer que seja.

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Já estive lá é uma das expressões mais bonitas que conheço em português; em inglês seria I've been there, e é igualmente bonita. Tal como em francês, italiano, espanhol ou qualquer outra língua.

Deputados, coisas

Tome-se uma pessoa, um homem, "feito de nada como nós". Retire-se-lhe aquilo que faz de uma pessoa pessoa e de um homem homem: a coluna vertebral, os tomates. Que fica? Um deputado à Assembleia da República Portuguesa.

Seria injusto (apesar de nalguns justificado) dar-lhe um nome: talvez não sejam todos, mas quase todos são assim. 

Jornalistas, qualidade

Os nossos jornalistas estão demasiado ocupados a gozar com o Álvaro e com o Relvas e estas coisas, coitados, escapam-lhes.

24.7.12

Infelizmente é verdade

Resta-nos esperar que deixe de o ser.

Brighton, Reino Unido, 24-07-2012

A viagem de Brighton para Lisboa foi má até Viana do Castelo; a semana em Lisboa passou a correr, a correr de mais; voltei para uma Brighton fria e chuvosa. Mas agora, faz hoje dois dias - ou três? - o verão começou. Vai ser curto, é certo: este fim-de-semana a coisa vai começar a piorar; mas estes dias têm sido magníficos. Da viagem no S. lembro-me dos bons momentos; os maus foram para o arquivo geral. A semana em Lisboa, tão curta, tão boa, com tantos passeios de bicicleta em tão pouco tempo. Para que servem os maus momentos? Que fazer deles se não esquecê-los, mandá-los para o arquivo para futuras referências, aprender com eles que o importante são os bons e não os maus?

Procuro trabalho em Brighton, mas há pouco. Esta combinação de falta de verão seguida de uma total falta de vento é bonita para umas coisas e má para outras. Bonita para os fins de dia como o de ontem; chata porque se ouve com frequência "estamos com pouco movimento". Bolas, não é movimento que falta, nesta marina.

É preciso imaginar um dia sem vento. Zero Beaufort, zero nós, zero metros por segundo, zero na medida que quiserem. Faltam duas horas para a noite chegar, o sol já está baixo mas o céu ainda está azul até perto do horizonte; aí fica uma mistura de cor-de-laranja com cor-de-rosa. A linha do horizonte não é claramente discernível, mas sabemos que há mar porque vemos dois navios, iluminados pelo sol e portanto eles também cor-de-laranja-cor-de-rosa a flutuar numa coisa que tem exactamente a mesma cor que o céu e é lisa como se tudo aquilo fosse um cristal com tons difusos e cores indescritíveis.

Brighton é uma cidade balnear, rica, bonita. T. dizia-me "é o único sítio do reino Unido onde poderia viver, para além da cidade onde nasci [Bristol]". Não conheço Bristol e só percebo essa história da cidade onde nasci porque nasci em Lisboa, uma cidade na qual se pode, e deve, viver, passar, nascer e morrer. Mas no que toca a Brighton tinha razão: é uma cidade onde se pode viver, apesar deste verão.

T. dizia-me ainda que Brighton é assim porque é a capital da cultura gay do Reino Unido. Mais provavelmente é a capital da gayice do Reino Unido porque é assim: bonita, animada, criativa, variada. Mignonne, e meio morta se fosse francesa; mignonne e viva porque é inglesa.

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Continuo a trabalhar no D.H., metade para agradecer ao armador a hospitalidade (paga, mas barata), e metade para estar ocupado. Hoje foi a vez da fuga de água no circuito de água doce; ontem, da corrente de terra. Temos frigorífico e podemos deixar a bomba de água ligada. Quanto mais trabalho neste barco mais gosto dele. Há barcos como mulheres: foram feitos para nós. Ambos tardam em ser encontrados; mas isso deve ser de propósito: precisamos de termos de comparação em número e qualidade suficientes.

RTPqueosP

Estes também são contra a privatização da RTP.

(Uma pequena nota: não tenho nada contra os salários elevados, antes bem pelo contrário. Mas eles não deviam sair dos impostos das pessoas e sim dos bolsos dos accionistas.)

Viver acima das possibilidades

Começa a circular por aí a ideia de que os portugueses afinal não viviam acima das possibilidades; quem vivia era a política portuguesa. Não é bem verdade: pelo menos desde 1975 que os portugueses votam nos políticos, e consequentemente nas políticas. Desde Cavaco Silva, que inventou o "monstro" (cheio de boas intenções: pensava que assim atraíria os melhores para a função pública. Infelizmente esqueceu-se da segunda parte, a possibilidade de pôr os piores na rua), e começou a cobrir o país de auto-estradas em vez de reformar seriamente a legislação (pensou que a Europa se ocuparia disso. Ocupou realmente - mas um pouco tarde e com os efeitos que se estão a ver) a Sócrates, cujos múltiplos desvarios não o impediram de também ser reeleito, que os portugueses votam em quem os faz viver acima das suas possibilidades. Apesar de continuarem tesos e de terem que emigrar se querem ganhar a sua vida.

Esganiços

Português, pequenez

Não sou historiador, nem economista e ficaria extremamente grato a quem me pudesse explicar o que é que mudou desde os séculos XV e XVI para que ser e pensar pequeno se tenham tornado nas condições distintivas do ser português; condições sine qua non, englobantes, inescapáveis.

Portugueses, apostasia

Coomo todos os povos que conheço na Europa (com a possível excepção dos franceses e dos espanhóis; e dos alemães, talvez) os portugueses não gostam de si próprios. Tal como os ingleses passam a vida a dizer mal dos "ingleses" e os suíços do "suíços" os portugueses acham que os "portugueses" são do piorio.

Claro que todos têm razão: todos os povos, como toda a gente tem os seus defeitos; e é natural que cada um se aperceba melhor - e sofra mais - com os defeitos do seu povo do que com os dos outros.

Claro que a categoria "portugueses" (para nos restringir ao que interessa) não nos inclui a nós nem aos nossos amigos; inclui um monte de pessoas, mas nós e os nossos amigos não somos "portugueses". Quando muito somos portugueses, o que é completamente diferente.

Só se compreende a aversão mortal (literalmente) que os muçulmanos têm pela apostasia quando se descobre que uma pessoa que considerávamos nossa amiga  e portanto pessoa decente se revela, afinal, "português".

23.7.12

A ver

Nunca pensei que um dia viria a citar um post de Luis M. Jorge, mas aqui fica.

(O que acho estranho é que há pessoas que se escandalizam quando alguém aconselha os portugueses a emigrar. Pelo menos os que não pertencem àqueles grupos).

19.7.12

Lisboa, Portugal, 19-07-2012

Como estar em Lisboa de passagem sem transformar a estadia (a passagem) numa peregrinatio ad loca memoriam? Ou, pior ainda, numa peregrinatio ad loca infecta

Como estar de passagem nas nossas raízes?

Evitando voltar a tudo o que se conhece, tentando olhar para tudo o que não se conhece com olhos de quem não conhece (como se fosse possível).

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Há sítios onde se pode viver e sítios onde se deve viver. A distinção é difícil de definir e fácil de ver. Lisboa está nos lugares de topo em ambas as listas.

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Há cordões umbilicais que nos ligam a certos lugares. O Tejo tão claro, tão fundido no resto da paisagem; o ar tragicamente sério dos portugueses (ou seriamente trágico, à escolha); a luz, meu Deus, esta luz que me faz pensar que estou a mergulhar quando desço a rua do Alecrim de bicicleta. As ruas que não conheço, tão familiares como as que percorri milhares de vezes.

Somos de um lugar, por muito que ele fuja de nós, ou nós dele.

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Está um calor de torrar; no restaurante (especialidade: sandes) entram magotes de engravatados, encamisados, encasacados. Formais, tristes, sérios. Penso que já tentei pertencer a essa tribo e tenho vergonha (de mim; eles são todos muito bem).

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ASAE: peço um bagaço caseiro como se estivesse a pedir uma dose de LSD.

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A rapariga olha para todos os outros clientes como eu: um olhar simultaneamente perscrutador e tímido. Verá a mesma coisa que eu vejo?

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Penso nesta cidade que amo como se não tivesse nascido nela. Estar de passagem é uma sorte, uma bênção: estamos bem onde quer que estejamos, de onde quer que sejamos. 

Solidão, solitários

- Pode ser-se um solitário e sentir-se só?
- Claro. Muito mais facilmente do que ser-se um solitário e sentir-se acompanhado.

Força, feminilidade

Tome-se uma mulher forte, muito forte; arranhe-se-lhe a superfície, um bocadinho; não é preciso muito. Encontrar-se-á a mais feminina das mulheres.

18.7.12

Antes, depois

A melhor idade numa mulher é a que vai dos trinta aos quarenta e cinco anos; antes tem muito que aprender, depois muito a esquecer.

17.7.12

Credibilidade

Este senhor acredita (ou diz-nos que acredita) nas coisas mais abracadabrantes: é possível conceber e ter um filho sendo virgem, há vida depois de morte, existe um céu para alguns, um inferno para outros e um purgatório para os entre dois, deus são três pessoas ao mesmo tempo, uma das quais ressuscitou três dias depois de morrer... enfim, uma quantidade de tretas (ou mitos, para quem preferir). Sinceramente, não me parece muito credível para falar de outras coisas se não aquelas que estudou e tenta impingir a quem o quer ouvir.

13.7.12

Definições

A imaginação é uma espécie de mar no qual nasce tudo o que faz de um homem homem: o mar, o vento, o desejo e o prazer do desejo, a liberdade, a loucura, o amor, um bom vinho, um peixe acabado de pescar, alguns pôr-do-sol, tu, uma noite limpa no mar.

A imaginação é um gozo que dá sentido a tudo o que faz da vida vida.

12.7.12

Morrer, matar

De que serve fazer amor, se não se morrer de cada vez? De que serve um debate, se cada argumento não matar o outro?

11.7.12

Sísifo

"Il faut imaginer Sisyphe libre et heureux", diz Camus no seu Mito de Sísifo (cito de memória). Eu sou livre e feliz; preciso de imaginar-me Sísifo.

8.7.12

Brighton, Reino Unido, 08-07-2012 (e vão 100)

Com ou sem Bosão de Higgs, é fácil provar a existência de Deus. Em cinco dias de trabalho, houve apenas um em que chovia à minha hora de saída, e nem sequer foi hoje. 

Fazer a Madeira Drive à beira-mar, a um domingo, é um passeio apaixonante. Ao longo de pouco mais de dois quilómetros é possível passar pela Era Vitoriana, contemplando as centenas de pessoas que ainda se passeiam no Brighton Pier (um pontão de 533 metros que, no séc. XIX, se tornou na principal atracção da cidade), entrar na Era Industrial e ver o Volk's Electric Railway, o mais antigo caminho-de-ferro eléctrico do mundo em funcionamento (data de 1883), lembrar Londres com a amálgama de hipsters com quem nos cruzamos e uma roda gigante ao jeito da London Eye (não será por isto, mas também não é por acaso que os ingleses chamam a Brighton "Little London"), sentir saudades do Paredão e saber que apesar da gente a pedal ou com cara de praia (mesmo se vestida até ao pescoço) não é possível dar um salto à Azarujinha e ver se a piscina encheu, se lá está a senhora que usa Coca-Cola em vez de bronzeador, ou se recuperaram o café onde se comiam uns caracóis tão bons. 

Do Pier até casa, o DARK HORSE, demoro 25 minutos. No outro dia fui pela praia e demorei duas horas. Em vez de areia, a praia tem pedras, a maioria do tamanho de um punho, ou um pouco maior. Os pés enterram-se nas pedras e é como se estivéssemos a andar no Inferno de Dante desenhado por Doré: além de estar frio (cada vez mais me convenço de que se o Inferno é quente é para lá que quero ir), as almas-penadas agarram-se-nos às pernas a pedir boleia. Nos últimos 40 minutos dessa viagem decidi provar a mim mesma que era leve, e tentei caminhar enterrando os pés o mínimo possível -- tudo o que alcancei foi uma leveza pesada, mas talvez seja apenas uma questão de sapatos.

Os ciclistas são velozes e fazem-me alguma inveja. As bicicletas aqui são caras, principalmente as maravilhosas que vi no Stables Market em Camden Town, cujos preços me obrigariam a trabalhar num mega-iate, sítio onde não preciso de uma bicicleta para nada; vou-me apercebendo, porém, de que em libras esterlinas não existe o conceito de barato -- é affordable ou não é, e geralmente não é.

Por falar nisso, ainda não sei quanto vou ganhar. C., a minha chefe, tem estado fora. Tem uma atitude que me agrada: disse-me imediatamente como queria as coisas feitas, corrigiu-me quando as fiz mal, aconselhou-me quando quase as fiz mal, elogiou-me quando foi pertinente. «OK, não fazes flores no latte mas o leite está muito bom». Hoje, ao contrário de ontem, quase não tivemos clientes. À hora de almoço aproveitei uma aberta e fui sentar-me lá fora, olhando para o sítio onde trabalho e tentando perceber o que lhe falta. É uma coffee shop com um café excepcional, na qual ter clientes é uma excepção. Existem três Starbucks e mais uns símiles na zona, mas não numa rua tão gira e tão cheia de gente. Pergunto-me se será da ausência de sofás -- por motivos freudianos, certamente, o sofá tornou-se num chamariz comercial; ninguém entra e muito menos fica num sítio onde não haja um sofá.

Tive tempo para varrer o andar de cima, que não devia ter sido varrido há pelo menos 20 anos, e para limpar a casa-de-banho, uma das mais gratificantes tarefas que levei a cabo nos últimos tempos. Num mega-iate com hospedeira permanente limpa-se, geralmente, o que já está limpo e os resultados são decepcionantes -- a diferença entre estar limpo e "a brilhar" pode, por vezes, ser muito ténue --, ao passo que num café britânico com pessoal a menos é possível ver a diferença em tudo o que se limpou, mesmo que chamemos limpar a passar um pano húmido por cima de uma prateleira cuja cor já se confunde com a do pó. A verdade é que o sítio é muito agradável e o aspecto tão rústico de tudo (um chão de tábua que nunca foi esfregado pode parecer apenas um chão de tábua vindo de um celeiro com cem anos na Carolina do Norte, como eram as paredes do Rooster's, em Charlotte) disfarça a sujidade.  Felizmente, a Food Standard's Agency não é a ASAE e é fácil para o café mais simples (sem sofás) ter as portas abertas sem se parecer com um laboratório de análises clínicas. As sanduíches do sítio onde trabalho são feitas e embaladas à mão, medimos a temperatura do que temos no frigorífico de três em três dias e a placa onde fritamos o bacon explode se a borrifarmos com detergente. A louça, no entanto, é lavada duas vezes: uma à mão e outra à máquina -- dependendo do funcionário de serviço ao lavatório uma sai melhor do que a outra, ou vice-versa.

São oito horas e acabei de jantar. O M. teve a delicadeza de preparar o jantar para mim. Sente-se hoje particularmente sozinho, porque G., o tripulante que restava além de mim, foi viver para um hostel. Também sentirei a sua falta -- é gente boa. A marina não é o sítio mais confortável do mundo, mas não é, de longe, o menos confortável, sobretudo se excluirmos a probabilidade de apanhar uma pneumonia sempre que fazemos o trajecto de 50 metros da doca à zona coberta. Os pores-do-sol aqui surpreendem-me de dia para dia. M. comentava, há tempos, que nem nas Caraíbas os viu assim. A explicação é simples,* e não precisa de Bosão de Higgs: Deus existe e está em todo o lado.

*A Oxford Comma também.

6.7.12

O silêncio do amorosos

Era uma santa relação: fazíamos amor até ficarmos sem voz; só depois conversávamos.

La Coruña, Galícia, Espanha, 06-07-2012

Esta cidade é podre de boa. É uma versão sexy do Porto.

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Um [Bavaria] 50 entra, seguido por um arrastão. Ambos se cruzam com uma pequena lancha que sai para a pesca, proavelmente, ou para um copo na baía. No cais do granel um graneleiro de 40,000 toneladas descarrega, ou carrega, não presto atenção suficiente para discernir; ao fundo uma coisa indescritível, parece um cruzamento entre uma draga e um navio do short haul do norte da Europa; do outro lado um petroleiro de talvez 20 ou 30 mil toneladas. Tudo isto rodeado pela cidade, prédios que num arremedo de atopia me fazem pensar numa S. Francisco dos pequeninos.

Talvez as autoridades da APL pudessem dar aqui um salto para ver como se consegue integrar um porto numa cidade sem terminais de contentores. Ou, melhor ainda, a população de Lisboa, para contestar decisões absurdas com conhecimento de alternativas possíveis.

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Gostar do que se faz - ou fazer o que se gosta, a ordem dos factores é arbitrária -  é remédio santo. Cura tudo, desde unhas encravadas às mais perniciosas e profundas dores de cabeça. 

La Coruña, Galícia, Espanha, 05-07-2012

Está um verão como já não se fazem invernos. A malta do "aquecimento global" (entre aspas porque acabo de ligar o aquecimento do bote) deve estar nas nuvens.

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E tem mulheres. Bonitas, sorridentes, alegres como se a cidade não passasse, apesar da chuva e do frio, do gigantesco cenário de uma publicidade à vida, ou à alegria.

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Fui jantar e na volta perdi-me. Sabia que me ia perder pela maneira como andava na rua: o mar estava à minha direita e não precisava de olhar para mais nada. Mas em La Coruña há sempre mar à nossa direita (excepto numa parte que de qualquer maneira é longe, curta e desinteressante), e fui parar ao mau mar, ao lado errado do mar. Mas o outro não fica longe, graças a Deus.

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Tapas a 1,60 euros. Com três fica-se jantado, com quatro mantém-se o peso e com cinco contribui-se para a casa da nutricionista, tão bonita, coitada.

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É uma das muitas ruas em La Coruña que se parecem com a do João do Grão, na Baixa de Lisboa. Mas aqui há infinitamente menos turistas do que em Lisboa, os menus são em espanhol, as caras e as conversas são galegas. Ontem "fui-me de tapas"; hoje vou-me de polvo e de povo. O Mesón O Galego, na Calle Franja 56 só tem o habitual defeito - que de tão habitual está quase a perder o apesar de tudo nobre estatuto de defeito - da televisão. De resto é perfeito: uma média de idades igual ou pouco superior à minha, clientes que nasceram na Galícia há pelo menos três gerações, decoração inexistente. Quem aqui vem vem para comer, e sabe o que quer comer.

Descubro uma coisa chamada Ribeiro Turvio, vinho branco servido numas taças de cerâmica, acre, jovem, (surpreendentemente) turvo, que nos fica pela boca até à eternidade, apesar da juventude; o polvo estava excelente, os boquerones também. O jantar acaba com um caldo à galega, outro meio jarro de Ribeiro Turvio e a ideia de que não ter um domicílio fixo faz de um gajo o melhor dos cidadãos: estamos em casa onde quer que estejamos.


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Ter prazer com as coisas simples aprende-se. É um percurso, no fundo. Começa por ter prazer com as coisas complicadas.


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A ASAE do imobiliário em Portugal chama-se (ou chamava-se, quem acompanha que me elucide) IGESPAR. Foi durante alguns anos dirigida por um inteligentíssimo imbecil cuja grande aspiração na vida era ser ministro [quase conseguiu, mas isso é outra história]; o qual prolongou as políticas do imbecil que o antecedeu e - de certeza - deixou as bases para a daquele que lhe sucedeu no cargo. O IGESPAR acha, ou achava, que os monumentos históricos têm "de respirar", e durante anos impediu coisas como, por exemplo, o soberbo passeio que vai de Cascais à Marina passando pelas bases do forte.

Eu não acho. Os edifícios antigos - como o dito passeio e grande parte da cidade de La Coruña ampla e desenvergonhadamente demonstram  - devem ser tratados como os modernos, o vinho tinto ou as mamas das senhoras (ou as pilas dos senhores, para quem gosta, já agora): à discrição dos utentes.   

Se antigamente houvesse um IGESPAR hoje as cidades não teriam interesse nenhum.

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O café de Macondo não tem televisão; em contrapartida tem excelente música, uma invejável colecção de arte nas paredes, é lindo e eu acho injusto só o ter conhecido hoje (c/ san Andrés 106).

Como de resto o café Central, última escala antes de chegar a bordo, trajecto perigoso e tão cheio de eternidades como o golfo da Biscaia, mais moderno mas com a melhor crema (Hijos de Ribeira, este nome merece ser fixado) que até hoje provei.

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As cidades interessantes são como as senhoras bonitas, não é? Descobrem-se milímetro a milímetro, eternidade a eternidade. Demora vidas, conhecê-las.

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Está uma exposição na cidade chamada (não reproduzo o grafismo) Maria Helena Vieira da Silva Arpad Szenes Traxectorias Paralelas. As cidades estrangeiras fazem de nós melhores pessoas, é certo. Vivi anos a minutos do Museu Vieira da Silva em Lisboa e nunca lá fui (admitidamente, uma das vezes que tentei  estava fechado; as outras devo ter ficado pelo caminho). É uma exposição relativamente pequena (cerca de cinquenta obras) mas que me fez descobrir Arpad Szenes e algumas obras de juventude de Vieira da Silva. E ter a certeza de que quando chegar a Lisboa vou ao Museu Vieira da Silva. Afinal sou quase tão estrangeiro em Lisboa como noutro lado qualquer. Ou serei, um dia, inch'Allah.

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Largo sábado, com a maré da manhã. Espero que em Portugal esteja a chover menos, e faça menos frio. E que um dia alguém se lembre de organizar uma conferência internacional chamada Lisboa + 25 (graus centígrados), para que os aquecimentistas vislumbrem os disparates que há alguns anos apregoam sem parar.

5.7.12

La Coruña, Galícia, Espanha, 04-07-2012

É preciso ser honesto: até ao segundo dia de viagem pensei que ela não ia terminar nunca, que ia bolinar no Golfo da Biscaia (apoiado pelo motor, a maioria das vezes), com frio e chuva e cinzento como a maior parte da minha vida pelo resto da minha vida; mas depois tivemos sol, o vento rondou um bocadinho e tudo ficou um muito melhor - a tal ponto que vi, no segundo dia pela primeira vez, o fim da viagem.

O qual mudara, entretanto. Deixou de ser Vigo e passou a ser La Coruña. É uma sorte, gosto mais desta do que daquela, que é uma cidade cinzenta e fechada. Ao princípio La Coruña parece uma ilha, tem mar por todos os lados; depois lembramo-nos da carta: La Coruña é uma península. Continuamos a passear e passa a ser uma grande península com muitas pequenas penínsulas agarradas.

É um fractal, geográfica, arquitectural, socialmente. Há prédios modernos nas zonas antigas, prédios antigos nas zonas modernas, as coisas imbrincam-se umas nas outras e tudo se reproduz a escalas cada vez menores. Há barcos de pesca na marina (porto de recreio, mais apropriadamente), mesmo no centro da cidade, como se as traineiras estivesse atracadas em Santos. Do outro lado fica o cais do granel e ao lado o dos cruzeiros. Há mar por todos os lados e cafés, bares,  restaurantes com nomes irresistíveis, como Bebedeiro de rua ou Café do Tio Ovídio (um gajo imagina Ovídio atrás do balcão a dizer "Não se deseja aquilo que não se conhece" - não é verdade: ama-se o que não se conhece, só se ama o que não se conhece, só se ama enquanto não se conhece; ou "os anos aproximam-se silenciosamente" - é verdade, é sorrateiro o andar dos anos).

Há lojas antigas com empregados jovens e lojas novas com empregados velhos, ruas estreitas com carros e largas sem eles, há alegria e tapas e raciones, prédios lindos, boa disposição.

E chuva, claro. Verdade seja dita: hoje foi pouca. A tarde esteve linda e cheia de sol, que se reflectia nos sorrisos das raparigas e as fazia andar ligeiras, sorrir e seduzir.

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Saio na sexta-feira. É bom largar de um porto de que se gosta muito; melhor do que de um que se detesta. Não sei porquê, mas é assim, Sempre foi. Pelo menos para mim.

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São duas da manhã. As traineiras largam para o mar. O SOGNO agita-se. Vou deitar-me e sognare. 

2.7.12

Brighton, Reino Unido, 01-07-2012


Ouço, do beliche, os brandais da marina inteira abanando, fustigados pelo vento. Penso como seria bom ouvir, como ouvi no mar, aquele véu de vento e pano sem interferências, a não ser a da rebentação -- a espuma tem som, já lhes disse? Olho o mar, ainda inquieto, e vejo-te. Vejo-me também, longe daqui.

Este ano nasceu bêbedo e entaramela as estações todas. Bela desculpa.

Está um frio dos diabos. Chove e faz sol, mas chove sempre mais do que faz sol. Hoje foi uma excepção, mas o frio era tanto que o Sol quase não contava. O meu cabelo é incompatível com o vento nestas quantidades, e o meu guarda-roupa (enfim, guarda-roupa é um eufemismo, devia dizer a mala de que tenho vivido nos últimos seis meses) com a falta de calor. Tive de comprar um casaco e umas calças, e a única camisola de manga comprida que consegui encontrar. Meteorologicamente, os ingleses vivem em negação. Calções, mangas curtas, saias, vestidos e sandálias é tudo o que se encontra nas lojas. Londres estava linda, banhada de sol, chuveirada de sol, imundada (piada higiénica intended) de sol, e assim sucessivamente. Mas nem por isso a porra do frio se foi, uma das razões para me querer ir embora o mais depressa possível, mas não é, obviamente, uma razão suficientemente forte. (As outras não são partilháveis.)

O trabalho é uma seca. Foi giro, quero dizer, aprender a fazer lattes, machiattos, capuccinos, americanos, mochas, flat whites e assim, mas não é para a profissão de barista que estou orientada. Nem para as sanduíches e saladas que vou fazer amanhã, nem para o salário que vou ganhar, menos de metade do que ganhava no J. Se a minha condição mo permitisse, ficaria aqui a tratar dos assuntos que cá me deixam sem trabalhar, a gastar a velocidades só recriáveis no grande colisionador de hadrões tudo o que ganhei com enorme sacrifício nos últimos meses. Mas não: sou pobre e viver sem "o dinheirinho certo ao fim do mês" causa-me aflições indescritíveis e indescritas, por isso, em todos os manuais de diagnóstico disponíveis. Como dizia a minha bisavó Joana sobre si mesma, «nasci para ser rica». Sim, porque também não gosto de trabalhar em geral, e não apenas em particular. Como fazer, então, para ser feliz?

Muita gente diria: encontra algo que gostes de fazer. O G., que conheci em Antígua e que agora está em Palma, canta e toca guitarra (bastante bem, por sinal) porque detesta trabalhar. E, quando questionado sobre aquilo que faz, confessa que também não gosta particularmente de fazer música, mas que a faz porque lhe parece a menos dolorosa das escolhas. Vejo-me a fazer o mesmo, mas não sem antes esgotar todas as hipóteses luteranas de ganhar a vida. Já estou a ver (e a sofrer) o trabalho que me vai dar não ter trabalho. Ser procrastinador é uma condição danada.

Porque não escrevo eu de coisas agradáveis?

Ouço, do beliche, os brandais da marina inteira abanando, fustigados pelo vento. Penso como foi bom ouvir, como ouvi no mar, aquele véu de vento e pano sem interferências, a não ser a da rebentação -- a espuma tem som, já lhes disse? Olho o mar, ainda inquieto, e vejo-te. Vejo-me também, longe daqui.

Este ano nasceu bêbedo e entaramela as estações todas. Tens razão -- felizmente, estamos em Julho, o que significa que já passou mais de metade.

Está um frio dos diabos. Chove e faz sol, mas chove mais do que faz sol, o que sempre contribui para que a temperatura não desça ainda mais. Hoje foi uma excepção, esteve um lindo dia de chuva. O meu cabelo é incompatível com o vento nestas quantidades, mas o vento não é quantificável; e o meu guarda-roupa (enfim, a mala de que tenho vivido nos últimos seis meses) com a falta de calor, o que me dá um óptimo motivo para ir às compras. Um casaco e umas calças e a única camisola de manga comprida que consegui encontrar, gira como tudo (de marinheira, vejam lá). Meteorologicamente, os ingleses vivem em negação, o que faz deles um povo extremamente positivo. Calções, mangas curtas, saias, vestidos e sandálias é tudo o que se encontra nas lojas. Londres estava linda, banhada de sol, chuveirada de sol, imundada (piada higiénica intended) de sol, e assim sucessivamente. Mas nem por isso o frio se foi, e o frio não é, obviamente, uma razão suficientemente forte para me querer ir embora. (As verdadeiras razões não são partilháveis.)

O trabalho foi giro. Aprender a fazer lattes, machiattos, capuccinos, americanos, mochas, flat whites foi o realizar de um sonho adolescente: ser barista por um dia. Vou poder cozinhar no meu novo trabalho, mesmo que seja só por umas semanas, ganhar o suficiente para viver e sair antes de o dia acabar num sítio adorável no centro de Brighton, os Kensington Gardens. A felicidade depende pouco das circunstâncias -- Ortega y Gasset discordaria, mas não consta que fosse feliz. O homem é ele, a sua circunstância que se lixe.

A seguir gostava de ir para Palma de Maiorca cantar com o G., que conheci em Antígua. G. não gosta de trabalhar e por isso canta e toca guitarra (bastante bem, por sinal). Eu também não gosto de trabalhar e G. inspira-me por isso. Vejo-me a fazer o mesmo, um dia: trabalhar sem trabalhar, diminuir essa obrigação fazendo algo de que gosto. O único senão é que até para não trabalhar é preciso trabalhar, mas como diria Lutero «o trabalho nunca matou ninguém» (correcções à citação são muito bem-vindas).

No, we cannot cling to the old dreams anymore. Venham os novos (e os velhos, mas que nenhum me dê conselhos).