Sem ela a vida é um inferno sem chamas. Com ela, as chamas aparecem e desaparece o inferno.
5.4.25
4.4.25
Diário de Bordos - Caminha, Alto Minho, Portugal, 04-04-2025
O dia começou com uma seca de duas horas a ouvir gente falar da «economia azul», discurso que conheço vai para mais de vinte anos. Admiro a capacidade dos políticos portugueses falarem, falarem, falarem (o Asterix dizia «falazarem») e ninguém os confrontar com o que (não) fazem, (não) fazem, (não) fazem. Nem fazem nem deixam fazer, dupla incapacidade, duplo espanto, duplo desgosto, duplo esgoto.
Continuou bem: um grande almoço no Maria Perre (ou coisa que o valha) em Viana do Castelo e uma tarde na Centésima Página, em Braga, uma livraria que é como todas deviam ser e algumas são: ponto de confluência de muitas artes, muitos saberes.
Ou seja: um dia a fingir que sou rico, depois destes meses todos a fingir que sou pobre.
«Senhor, estamos perto,
Já alcançados, Senhor,
Reza, Senhor,
Afastámo-nos com o destino do vento,
Fomos beber, senhor.
Brilhava.
Olhos e boca estão abertos, Senhor.
Bebemos, Senhor.
O sangue e a imagem que estava no sangue, Senhor.
3.4.25
Portanto
Se ela fosse a minha noite dormiria todas as noites com ela, nela. Mas não é. Nem minha, nem noite. É o dia resplandecente, o sol que o ilumina, esse dia tão luminoso quanto eu sou a escuridão.
(Dia sem noite, portanto.)
O campo e os comboios
Peregrinações
Não me importaria nada de fazer o "caminho de Santiago" (aspas porque cito) mas de avião. Ou de comboio, vá. A pé, de bicicleta, a cavalo num burro ou só a cavalo, de trotineta, patins, de carro ou de mota dispenso, obrigado.
Apetece-me dizer o que o meu Pai dizia à minha Mãe quando a ia deixar à igreja para a missa semanal: "Reza por mim, mulher, que eu estou velho". Depois ia para o Refeba, ali ao lado, rezar a outros deuses e juntar-se a outros peregrinos.
2.4.25
Isto dito, amo-te
Não há expressão que tão bem demonstre a insuficiência da linguagem como "Isto dito".
Isto dito nada está dito, tudo está por dizer, falta dizer qualquer coisa, é preciso esclarecer o que antes ficou obscuro.
Isto dito: a linguagem é uma permanente morte na praia. Nada nada nada e morre à chegada. Não tem salvação.
Isto dito: o que acabei de dizer não é mentira, é só insuficiente.
Isto dito: há palavras a que não se pode acrescentar nada, que não aceitam clarificações nem complementos.
Por exemplo: amo-te.
Dormir, venenos
Toda a gente quer dormir mas quando se lhe propõe dormir para sempre, aí já ninguém quer. Ou muito poucos, vá lá. Ora se dormir fosse bom, dormir para sempre seria melhor, ou não?
Não sei. Talvez não. Talvez dormir seja bom exactamente por não ser para sempre. É como os venenos, que dependem da dose. Se esta for pequena são um medicamento e só se tornam venenosos se a dose aumentar.
É como tudo, na verdade: não há nada que não beneficie de comedimento, de matizes. Até as vitórias precisam de derrotas intercaladas para não se julgarem eternas.
1.4.25
Dispersas diversas
31.3.25
Aprender a ler
É isso: aprender a ler. Preciso de aprender a ler. Resta saber o quê, que letras, que alfabeto. Conheço o das estrelas, o das nuvens, o das vagas do mar que me trazem notícias de onde vem o vento, qualquer que ele seja. Conheço o alfabeto do teu corpo, de A a Z e de volta a A. Sei ler o Sol - ou melhor, as sombras que ele deixa, porque a luz cega. Não é ela que vemos, é aquilo que ela deixa ou quer que vejamos. Velhaca, a luz. Sei ler o tempo - não o dos relógios mas o outro, o que não se vê nem se ouve e se dá apenas a quem sabe que ele existe. Esse tempo que vejo no teu sorriso, na tua pele, esse tempo que nos leva aos princípios e aos confins e nos ensina que vai e vem, ir e vir são irmãos siameses. Andam sempre juntos, não vai um sem vir o outro.
Sei ler a vida. Só me falta aprender a ler a morte.
30.3.25
Diário de Bordos - Caminha, Alto Minho, Portugal, 31-03-2025
26.3.25
Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 26-03-2025
Como toda a gente que faz o que eu faço, viajo muito de avião; como toda a gente que tem a família num país diferente daquele - ou daqueles - aonde vive e trabalha. Passo a vida em aviões e desenvolvi uma razoável aversão a tudo oq ue está com eles relacionado, logo desde a porta dos aeroportos. Durante muitos anos arranjava-me para chegar à última da hora, muitas vezes só não perdendo o bicho devido a correrias insensatas, a ultrapassagens em filas. Cheguei a telefonar para um check in, em Londres, a pedir-lhes para não o fechar que estava a caminho. A senhora ficou tão siderada que esperou por mim. Se bem me lembro, o avião não saiu atrasado e se saiu foi pouco. Esse tempo acabou. Agora é muito mais frequente chegar demasiado cedo ao aeroporto, como hoje. Ainda por cima, estando de maré baixa não posso beneficiar dos magníficos produtos a preços magníficos que o aeroporto de Genebra propõe aos passageiros com tempo - e dinheiro, claro. De maneira faço aquilo que faço sempre, qualquer que esteja o estado da maré: observo os companheiros de (para mim) infortúnio, tento identificar as línguas que oiço (cada vez menos...) e escrevo meia dúzia de linhas de disparates, sempre alivia a pressão.
Ir ao supermercado aqui é uma dupla dor d'alma: os produtos "bio" (aspas porque cito) invadiram tudo. Como se os preços não fossem suficientemente dementes com os não-bio.
24.3.25
Incapacidade
Sou livre por absoluta incapacidade de o não ser e isso paga-se caro. É um handicapp, um defeito de fabrico.
23.3.25
Adormecer, a ponte do sono nascente
Para adormecer, F. põe-se de sentinela numa das extremidades da ponte que o liga à noite. É por ela que o sono chega. A vigília é sui generis: consiste em relaxar todos os músculos do corpo, um a um. Tarefa a que F. se dedica com a aplicação que põe em tudo o que faz. Começa por fechar os olhos, deitar-se de lado, cruzar os braços e pôr as mãos nos ombros - a direita no esquerdo e a esquerda no direito - encolher as pernas, bem dobradas, como se quisesse levar os joelhos ao queixo, respirar fundo durante pelo menos um minuto e depois distender-se lenta mas completamente. O sono chega pela tal ponte - a ponte do sono nascente, como ele lhe chama - umas vezes ruidosamente, outras muito de mansinho.
Os obstáculos ao avanço do sono são dois: palavras e números. Nunca andam juntos, deo gratias. E não atacam todo as noites. Só algumas, aquelas em que a ponte fica mais longa.
(Cont.)
Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 23-03-2025
A primeira surpresa do dia foi no autocarro para o salão do livro: ia cheio a deitar por fora. Domingo, nove da manhã. A segunda foi já no salão propriamente dito: no bengaleiro não paguei nada, porque "sou escritor" (aspas porque me cito). Ou seja: poupei nove francos, pouco mais de a nesma coisa em euros. Ainda há quem diga que ser escritor não compensa financeiramente.
Do salão não guardo muitas recordações: meia dúzia de cartões de visita, uma reunião amanhã (para as fotografias). Não incluo nesta ausência, nesta dúvida, nesta ambivalência os momentos que passei com a minha filha, inapagáveis manifestações da alquimia genética.
Nem o facto de me ter deixado enganar por um vendedor e ter comprado um livro que é uma merda - si tant est qu'il y a des bouquins merdiques, chose que je sais très bien n'existe pas. É simplesmente um livro de que não gosto. Tenho uma desculpa: fala do Burundi e do Ruanda; duas: o vendedor era de uma eficácia redoutable; três: a L. também o queria. Combinámos que o leria e lho passaria. Comecei a folheá-lo no autocarro de volta para casa e lamentei imediata e amargamente a compra. O que me pôs perante um dilema paterno-interessante: dou-lhe aquela porra ou empresto-lha, somente? Opto por emprestar-lha, somente. Por um lado não dou coisas de que não gosto e por outro pode ser que dali saque qualquer informação interessante.
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Hoje à noite há fondue de queijo. Vem cá a G. Já bebi um kirsch, para ir preparando o estômago.
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Amanhã: reunião na Vent des Routes, ver se querem vender as caixas de fotografias.
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Agora; sesta, ver se estes passeios interiores me servem para alguma coisa.
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(Cont.)