17.1.25

"Pelos atalhos por onde a erva cresce"

O último livro de Knut Hamsun chama-se ou foi traduzido por qualquer coisa como "Pelos atalhos por onde a erva cresce". Ou coisa que o valha, não me apetece ir ao Google verificar. Tivesse eu o livro à mão e teria a certeza e retomá-lo-ia aonde o deixei. Mas não tenho. Aquilo é uma espécie de auto-apologia (nota: hesitei entre panegírico e apologia. Fica este). Quem escreveu Mistérios, Fome, Pan et al. não precisa de se desculpar de coisíssima nenhuma.

Hamsun é um dos maiores escritores de sempre, escreveu um dos maiores romances de sempre (chama-se Mistérios, se por acaso) e como tinha simpatias nazis foi multado, condenado e mai-lo raio que o parta. Isto para quem pensa que os males da modernidade começaram hoje. Se não me engano até o Nobel lhe tiraram, mas disto não tenho a certeza.

Até porque não é disto que queria falar quando Hamsun me invadiu a memória e o desejo (de acariciar um livro, entenda-se). Era desta noção de estar num atalho já tantas vezes percorrido, um atalho que leva a lado nenhum. Ou melhor: sempre ao mesmo sítio.

Percorro de novo o atalho já tantas vezes percorrido, bilhete de desembarque na mão, bornal à bandoleira, pergunto-me "Porra? Porra? Porra?" e respondo "Porra!"

Por onde as ervas crescem? Sorte têm elas, que pelo menos tiveram tempo para crescer.

Meias-águas

Não é nadador de meias-águas. "Ou ando pelo fundo ou nado no alto, mas no meio não me ponham que não me ajeito."

16.1.25

Ironia, amor, leveza e suicídios

Releio Cannery Row (se não me engano, em português traduzido por Bairro da Lata). É um dos meus livros favoritos de Steinbeck. Já não o lia há tantos anos que seria mais fácil contá-los em décadas. Foi uma das minhas grandes escolas de ironia e de amor pelas pessoas (este um pouco esquecido, lamentavelmente). 

Nas primeiras vinte páginas há dois suicídios. Para quem escreve com tanta sensibilidade e leveza de traço não está mau.

15.1.25

Na vida

Dormes com dois edredons dobrados ao meio. Quatro camadas de calor. Escuridão absoluta, ruído zero. És um sem domicílio fixo de luxo, alguém um dia te disse. A amizade é um castelo e o amor uma palhota. Uma espécie de história dos três porquinhos ao contrário: a casa que a priori parece mas forte é a que desaba primeiro; a que foi feita primeiro é a que dura mais tempo. Quem sopra? A vida, dirias, se te apetecesse aconchegar-te nos lugares-comuns como te aconchegas debaixo dos edredons. Na insuportável simplificação de "a vida". Fica "a vida". Estás farto de complexidades, complicações e afins. Voltaste à casa da partida, que é a ausência de casa. Voltaste à vida, que é a ausência de morte. Voltaste à ausência, presença constante. "Who is the third who walks always beside you?", perguntava Eliot. Se fosse eu, perguntaria "Quem é o outro que caminha sempre ao teu lado?" e a resposta seria "Ninguém". Não o de "O meu nome é Ninguém" mas ninguém, mesmo, ausência de alguém. Seria um mentira, claro. Há sempre uma parte de mentira no queixume, na pieguice. Até na poesia há, quanto mais na vida. 

N'empêche. Vou na estrada de regresso ao ponto de partida, acompanhado pelos de sempre: Ninguém, eu e a realidade, que me alberga e chicoteia a lamechice, essa cadela piolhosa.

Diário de Bordos - Porto, Portugal, 15-01-2025

O Porto, toda a gente sabe - e quem não devia saber - é sinónimo de almoço n'O Buraco, jantar no Solar do Moinho de Vento e copo pré ou pós-prandial no Candelabro. Hoje (isto é, ontem) a romaria respeitou o trajecto à linha. Até na inclusão do Pipa Velha para o LBV pós-favada num Moinho de Vento desoladoramente quase vazio (desoladoramente é uma semi-ironia. O serviço foi ainda melhor do que o do costume). E teve bónus: livrarias Flâneur, Rosebud (John Steinbeck's Cannery Row, dois euros. What else?), Térmite e a companhia da C. R. - interrompida subitamente por motivos veterinários mas agradável como sempre.

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Percorro o Porto de bicicleta e penso que a CML, quando receber queixas de ciclistas sobre a pavimentação das ruas da cidade, devia mandar os queixosos pedalar um dia no Porto. Regressariam a Lisboa e dariam graças. Lembram-se daquela anedota do gajo que vai ao sábio queixar-se de que a casa aonde vive é demasiado pequena? O sábio responde-lhe que precisa de meter uma cabra em casa (assumindo que a que lá está não o é), depois um porco, depois uma ovelha e por aí fora. Quando o homem está à beira da explosão, diz-lhe para pôr os animais todos na rua e pergunta-lhe o que pensa da casa. «É óptima», responde. «Enorme.»

Passar-se-ia o mesmo com as ruas da ex-capital do Império depois de uma visita à actual capital do Norte.

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Quinta-feira repetirei a dose, desta vez com um duplo bónus-companhia: almoço com o A. G. e jantar com a C. P. e o D.P.F. Uma cidade é feita de gente, lembram-se? (Penso que não. Ninguém liga peva ao que eu digo.)

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Tão pouco dormirei no meu bem-amado hotel San Marino. É uma pequena traição, uma infidelidade sem consequências, um desvario provocado por uma crise súbita de Razão. Acontece a qualquer um. Vim dormir a um airBnb, por sinal bastante razoável e já reservei a noite de quinta.

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Pequena reflexão causada pela espuma dos dias: se a solidão é um pecado mortal (CPC dixit) a quem o devemos confessar?

Provavelmente à escrita. Não, C.?

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ADENDA 

Notas soltas:
1 - Os automobilistas do Porto são como os de Lisboa. Buzinam muito. Como os baboons do Cabo, guincham que se fartam. Devo contudo sublinhar, agradado, que nenhum me dirigiu o seu protesto. Aquilo passa-se entre eles - contrariamente aos mencionados macacos, de resto, que reclamam contra tudo e todos.

2 - A minha bicicleta não se adapta bem ao Porto: é uma bicicleta de cidade. (Da série inglesa "In praise of older jokes an other demons".)

Águas gélidas?

Patinas em gelo fino mas o rio é longo e a paisagem bonita. Pensas que o prémio vale os riscos do caminho. Vês uma fissura e pensas que estás equipado para cair nas águas gélidas da solidão - esse «pecado mortal» - se for caso disso. A questão não é essa. É saber se tens vontade de cair. 

Ou de continuar a patinar.

8.1.25

Aliteracôes e outras dúvidas

Uma mama numa mão e na outra a dúvida, enrolada junto à face: que fizeste dessa vasta estepe que passo a passo dia a dia atravessas a que outros chamam vida e tu eu, simplesmente? Pela pele te percorro pé ante pé e me pergunto que pele é esta que a noite me pôs nos dias? Avisa da vida a saída com a devida antecedência mas não faças da cedência a tua essência. Não entres na noite sem uma mão no mar e a amar ama a mama que tens na mão, o mar que ta trouxe e o olhar aonde ele e ela vivem.

7.1.25

Perspicácia, mitos e descrença

A desconfiança, o cepticismo bacoco, a descrença são actualmente a melhor prova de inteligência e de perspicácia. São por assim dizer o último refúgio dos vazios de espírito. Acreditar em alguma coisa, em alguém,  é prova evidente de ingenuidade, também conhecida por estupidez.

Porém, dada a necessidade inata de o homem acreditar em alguma coisa, constroem-se outros mitos, como salvar o planeta reduzindo os puns das vacas, circulando em carros eléctricos ou salvar a comunidade acreditando no poder benéfico da indignação e da censura.

3.1.25

(Cont.)

Envelhecer é destapar-nos das camadas de ignorância que nos têm coberto desde que nascemos, como placas geológicas mas com tempos mais breves. Ou dos cobertores de uma noite fria quando o dia nasce.

Diário de Bordos - Lagos, Algarve, Portugal, 03-01-2025

Não é bem uma questão de «só os imbecis não mudam de opinião». É mais «crescer e aprender». Ou «é muito difícil ser jovem e não ser ignorante». Ou, mais realisticamente: «em jovem eu era um palerma e à medida que fui crescendo fui sendo-o menos. Infelizmente ainda não cheguei ao nível zero da palermice mas lá chegarei. Basta morrer.»

Encontrei o canal Mezzo na televisão doméstica e oiço um programa dedicado ao trio Play Bach, coisa que há coisa de quarenta anos não apreciei. É preciso ser idiota, não é? Talvez não. A minha hipótese é: «Não. Basta ser jovem.» Essa hipótese é facilmente falsificável: milhares de jovens ouviam isto e gostavam e apreciavam conhecedoramente. Ou seja: a minha hipótese muda: «Basta ser ignorante.» A palermice e a ignorância andam sempre de mãos dadas, não é?

É.

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Inovação no glühwein: acrescentei feno-grego e as passas que comprámos na Cafélia. O feno-grego é o resultado de uma intensiva exploração de Lagos à procura de alcaravia. Encontrei os dois num minimercado chamado Go Minimarket, pertencente a senhoras holandesas, sul-africanas e não sei que mais.

Ainda há quem seja contra a presença de estrangeiros em Portugal? Acreditem se quiserem, mas antes do Go fui a três «gourmets» (Google dixit) e as pessoas não sabiam sequer o que era alcaravia. Não sabiam. Nunca tinham ouvido falar. Alcaravia.

Isto transporta-me aos meus anos de chegada a Portugal em dois mil e dois ou três: telefonava aos supermercados de Cascais para saber se tinham ervas frescas - como cebolinho, por exemplo. Acreditem se quiserem. Hoje não telefono. Ainda me lembro da reacção àqueles telefonemas. Visito-os e constato in persona a reacção. «Alcaravia? O que é?»

Lá encontrei. Go minimarket. Goed so, jonger. Dank u wel.

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Resumindo: duas rodelas de laranja, dois paus de canela, cardamomo, cravinho, açúcar mascavado, feno-grego, passas, alcaravia. Aquecer devagar. Devagar. No momento de servir acrescentar rum barato. Beber. 

Pensar na inabalável associação do calor e da sorte. Senti-la. Até à medula. Beber de novo. Repetir. Parar de pensar. Até à medula.

In Sónia?

Lá estás tu com a mania dos anglicismos. Não, não se chama Sónia.

Yin e Yang?

O belo e o feio, Deus e o Diabo, a ganância e a generosidade, o amor e o ódio... Os chineses têm razão quando representam o mundo aos pares interligados e perdem-na quando os pintam de preto e branco. A cor dominante da realidade é o cinzento, em todas as matizes possíveis. 

De vez em quando lá aparecem uns pingos de cor a alegrar o cinzento, é certo, mas isso são contas de outras metáforas.

Antares

Leio cada vez menos e mais dificilmente, por razões psicossomáticas. Isto é, psíquicas e somáticas. É por isso um prazer ler Antares, de Clara Pinto Correia, mesmo que ao ritmo de um caracol a atravessar um ringue de patinagem no gelo. Acabo de passar pela mais bela descrição de uma cena de amor que me foi dada ler por um autor português.

Pena é o trabalho de edição, que deixa passar uma virgulação anárquica e outros pecadilhos menores. 

A este ritmo espero terminar em dois mil e cem, o que me parece adequado para uma auto-exegese desta amplidão. E beleza.

2.1.25

Diário de Bordos - Lagos, Algarve, Portugal, 02-01-2025

Construir casas quentes e mantê-las aquecidas requer energia anímica. Tanta quanto aquela que se estuda nos manuais de termodinâmica. Requer também um Estado menos predador - ou, na sua ausência, um povo que se revolte contra os impostos com que o albardam. Não temos nem um nem outro. Aceitamos como fatalismo o que não passa de resignação, outra palavra para cobardia. Inevitavelmente, penso naquela revolucionária alemã que a seguir ao vinte e cinco de Abril veio para Portugal acompanhar a gloriosa revolução. Pouco tempo depois foi-se embora. "Um povo que não consegue ter pressão na água do duche nunca será revolucionário" terá a senhora explicado, cheia de bom-senso. Suspeito que  regressou à sua terra antes do Inverno: depois, teria certamente acrescentado à pressão da água nas torneiras a incapacidade de se aquecer devidamente. Felizmente temos baratos e bons os vinhos e as aguardentes.

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Dias de televisão, frio e discussões inter sororibus. Felizmente, tudo isto compensado com um saldo bastante positivo por excelentes vinhos, lautas refeições e acolhedoras aguardentes  num cenário digno do Charme Discreto da Burguesia.

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Lagos - almoço na Adega da Marina, cheia como sempre. Este "restaurante" é um mistério: como é que uma cantina com capacidade para acolher os espectadores de um "derby" (aspas porque é irónico) consegue fazer comida tão boa?

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O T. está com um cancro na próstata e eu fiquei devastado um bom par de horas. Depois aterrou em mim a noção de que os tratamentos evoluíram e aquele casal é capaz de enfrentar isso e muito mais.

E ainda há quem seja contra o optimismo. De devastado passei a simplesmente preocupado e assim ficarei até ver. É o meu melhor e mais antigo amigo.

Chegámos a uma idade em que temos de nos ver mais vezes, é o que é.

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Viemos passar uns dias a Lagos, a L. e eu. É sempre com um indescritível prazer que revejo esta cidade. Para completar o ramalhete só me falta um par de boas notícias. Enquanto não chegam, vou trabalhar para fazer outras.

30.12.24

Casamento

O casamento é um acto social mas ao contrário: é uma despedida. É os noivos a dizer à sociedade que a trocam por um novo domus. "A partir de agora já não somos só vossos. Somos um do outro e da família que aí vem."

28.12.24

Taxonomia das Luas

A única visão mais bonita do que uma lua cheia no céu são duas luas cheias entre ti e o tecto.

Esboço de uma teoria das relações afectivas

Os três ingredientes fundamentais de uma relação amorosa são o amor (ou amizade), a paciência e a surdez, quanto mais não seja parcial. São como as três bolas de um malabarista principiante.  A perenidade da relação depende de quanto tempo levam duas das bolas a cair.

27.12.24

Foz, nascente

Não percebo de casas. Não percebo nada de coisas sólidas, com tijolos, janelas, portas e telhados. Tão pouco me peças para marcar datas num calendário: o tempo é demasiado sólido. 

Fala-me de ventos e mar, correntes e barras, de agendas feitas de água. Fala-me de peles, de cabelos, de olhares, da solidão,  esse "pecado capital" (CPC, tão lindamente). Fala-me de amor, a mais fugitiva das coisas sólidas. Fala-me da fugaz e falaz felicidade, como um tremor de terra. Fala-me de tudo, de placas tectónicas, de vulcões, tsunamis, do vento nas palmeiras, da areia que no deserto cobre os trilhos.

Fala-me de ti, desse teu sorriso que ilumina o mais negro dos passados, o mais luminoso dos futuros.

Fala-me das fluidas formas do amor, cristalizadas em ti. Fala-me das fluidas formas da vida, que nascem e desaguam em ti, foz e nascente.