18.9.13

A bordo, 16-09-2013

Estou no mar, sozinho, feliz e nu; mas ainda não estou em Bocas del Toro, o meu Jerusalém, a transfiguração de Quepos, o meu destino existencial, simbólico.

Navego há três horas e até ver o HELENA S. tem-se portado bem. Bate um bocado, mas isso não é surpresa: a plataforma é baixa. Passa bem na vaga, e isso tão pouco é inesperado. Descobri nesta viagem que estou farto de barcos problemáticos, que o refit - pelo menos no Panamá - não é a minha praia; e contudo. Contudo gosto do HELENA, olho para ele como é e vejo o que será. Precisa de trabalho interno e externo, de refazer a electricidade e de ser pintado, de levar uma electrónica nova, de umas mexidelas no plano de convés. É um barco bom com mau aspecto, um barco bom que parece mau. E eu, que tinha jurado para nunca mais, deixo-me ir, cedo àquilo que não se vê mas se sente.

E de caminho encontro a resposta que me foge há tantos meses.

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O vento continua ponteiro, claro; e está a crescer, como não podia deixar de ser. Estou a fazer quatro nós de VMG em árvore seca; se içar a grande e tirar bordos apoiado com o motor faço os mesmos quatro nós e poupo gasóleo.

(Ao contrário do que parece, isto é uma pergunta, não uma afirmação).

E quando parar para içar a grande aproveito e dobro a boça do dinghy. (Isto sim, é uma afirmação. A ver se e quando páro. A perspectiva de passar meia-hora a içar pano para depois o vento cair atrai-me pouco).

A resposta é sim e não. O meu VMG não aumentou significativamente e tenho de ir quase às mesmas rotações. Mas não levei meia hora a içar o pano.

Deve haver outras profissões que ensinem as pessoas a lidar com a ambiguidade, a ambivalência, a incerteza; mas eu não sei de nenhuma que o faça tão profunda e eficazmente como a navegação à vela.

Meia hora depois - voltou tudo ao statu quo ante. Grande arreada, motores nas 2800, rumo directo. De qualquer forma se não se experimentar não se tem a certeza.

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Um dia hei-de andar num barco que não cheire a gasóleo; que não tenha fugas de gasóleo. O cheiro no casco de bombordo que tínhamos sentido durante as provas de mar e atribuído aos navios fundeados na baía vem de um dos injectores. Mais um exercício de recolha de gasóleo. Felizmente o mar está calmo e não vou enjoar como enjoei à saída da Isla de San Andrés*.

São pequenas coisas, pequenos passos, pequenas avarias que nos levam a conhecer um barco, a gostar dele, a apreciá-lo, a vê-lo pelo que é e não pelo que dele se vê.

A noite chega, o vento cai, a velocidade aumenta; muito pouco, mas aumenta. Qualquer ganho é bem vindo, por pequeno que seja. Não consegui encontrar gás em Shelter Bay e decidi sair (teria de espera três dias, três!, caso contrário). Pensava que tinha gás para uma refeição ou duas, mas nem para amostra. Tenho comida fria, pouco apetitosa.

Que raio de sequência - o gerador do BELLE AVENTURE que se recusa a funcionar e agora esta. Entre os dois, um jantar miserável e um bom pequeno almoço. Já decidi que entro à noite, se for preciso (vai ser). Quantas vezes estive no mar sem comida, ou sem gás? Antes desta uma só, quase vintre e quatro horas à frente de Dieppe, sem vento e sem motor. Teria vinte e cinco ou vinte e seis anos. Uma lição que durou trinta anos; esta vai decerto durar outros tantos.

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B. liga-me freneticamente. Quer notícias, compreensivelmente: está à nossa espera há uma semana (isto desde a última actualização. A nossa espera está vai para um mês). Mas não me apetecia falar-lhe, dizer-lhe estamos com problemas, saímos amanhã, afinal não, a saída foi adiada mais um dia ou dois, olhe apareceu outra coisa e vams ter de ficar aqui mais um dia.

Não faças aos outros aquilo que não queres que te façam a ti? Sim e não. Começo por tentar encontrar uma justificação, uma desculpa, mas rapidamente troco essa actividade por tentar, simplesmente, perceber porque o fiz. Peço profusamente desculpa a B. quando finalmente lhe ligo e digo que estou a caminho; mas não são verdadeiras, as desculpas. Não me sinto culpado. Não lhe liguei porque tinha outras coisas em que pensar, ponto.

Não é verdade. Pensava nele, e na S. muitas vezes. Dizer-lhes afinal não saio hoje, ligo-te quando souber uma data certa demoraria 5 segundos, e poria a bola no campo deles. Na verdade não lhe ligo porque o meu problema é enorme, é o maior do mundo, é maior do que o deles a esperar-me. A única maneira que tenho de lhes mostrar isso é não ligando, e pedindo desculpas quando o fizer.

Será? Não será? Estarei à procura de psicologias caseiras para esconder uma simples - e rara - má educação? Talvez no fundo tenha simplesmente vontade de ser mal educado e as circunstâncias permitem-mo. A educação é uma trela que trazemos permanentemente ao pescoço. Os outros têm-na na mão.

De vez em quando temos de a desapertar de deitá-la para o lixo (mas depois algo nos compele a ir buscá-la de novo, uma maçada que prova que na verdade não a deitámos fora. Só a desapertámos um bocadinho).

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A verdade é que já passei muita fome. Às vezes apesar de ter dinheiro, como no Burundi ou no Zaire; outras por não o ter. Um dia sem comer - enfim, a comer cereais, latas e assim - não é uma tragédia. É uma chatice, só. Se forem dois dias seguidos é uma dupla chatice. E continua a não ser uma tragédia.

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*- Que horror! Lembras-te, Helena?

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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.