21.9.17

De onde somos

"Eu não sou daqui! Eu não sou daqui!" Os gritos da galinha Tadinha ecoavam nas paredes vazias da prisão "tipo Piranesi" onde ela vadiava. A prisão era grande e Tadinha não se apercebia, coitada, que estava numa prisão e não, como supunha, numa cidade cheia de altos e baixos.

Tadinha apreciava os grãos de milho que ia debicando e imaginava deixados ali por um Deus benfazejo no qual continuava a acreditar apesar das evidências. Só não queria debicá-los sozinha.

As quais evidências não são as mesmas para todos, claro. Tadinha, por exemplo, não percebia uma evidência que Piranesi percebeu: a grandiosidade, a beleza, a imponência oprimem tanto como a pequenez e a fealdade, se forem vistas na perspectiva de uma galinha sozinha, tadinha. Já um galo olharia para aquelas paredes imensas e pensaria "isto com uma galinha aqui até ia".

Mas Tadinha não era dali. Não era de lado nenhum, de resto. Não pensava - nunca pensou - que para ser de algum lado lhe bastaria um galo abraçado a ela.

Tadinha não sabia que somos de onde nos abraçam. Pensava que era de onde estava.

Um cantor judeu que percebia muito de opressões falava das pessoas que são oprimidas pelas figuras da beleza. Dizia ele que essa sensação partilhada e descoberta num elevador pode levar à cama de um quarto de hotel, a um amor fortuito, a uma comunhão breve e libertadora: as limousines podem esperar, o trânsito buzinar, enquanto num quarto de hotel dois seres fogem, cada um para seu lado ainda que esse lado pareça o outro, a pessoa que ali ao lado partilha a fuga.

Tadinha não percebia nada de opressões. O seu mundo era meia dúzia de grãos de milho e uma esmagadora sensação de inadequação. Infelizmente tinha um vocabulário limitado. Não sabia que murmurar "Sou tão inadequada" tem o mesmo valor do que gritar "Eu não sou daqui".

Zero, mas isso é outra história. 

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