19.1.18

Náufragos

Só as verdades abstractas são suportáveis; as outras, concretas, tendem ou a deixar-nos de mármore ou a indignar-nos de tal forma que nos transformam também em mármore, mas quente, desta vez. As verdades concretas têm o misterioso poder de nos deixar ver através delas  como se tivessem fendas pelas quais o olhar se perde e nos impermeabiliza. Acabou-se o veneno para as zarabatanas de uma tribo da Amazónia; acabaram-se os comprimidos de um pobre de uma cidade europeia; apareceu um anjo (com documentos em dia, isto foi garantido pela imprensa de referência, fotografado, testemunhado) numa autoestrada do Sul do país. Verdades absolutas, concretas, palpáveis cuja única virtude é relembrarem-nos a existência de florestas tropicais, doenças ocidentais e habitantes celestiais.

Já o abstracto é uma floresta (azul no alto da madrugada) na qual se passeiam anjos indocumentados, lúbricos, loiros, provocantes e se acredita sem mesmo necessidade de uma cerveja no inferno.

Não acredito em verdades, acredito em ilhas literais ou metafóricas, tropicais ou temperadas, flutuantes ou bem presas ao fundo com o peso da podridão toda que levam em cima. Não acredito em anjos, acredito no amor venéreo ou platónico, na mentira, na força terapêutica da amizade, no seu poder regenerador. Abstractos como a verdade, luzes de uma noite que por vezes um corpo atravessa deixando um rasto de fogo, invisíveis para todos excepto para os náufragos da verdade.

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