30.3.19

Dispersas de hoje, camionete Lisboa - Mértola, 30-03-2018

Verdade seja dita: se eu tivesse trazido roupa apropriada a chuva não seria uma chatice por aí além. Mas não trouxe e este vai ser um domingo molhado. E segunda-feira também, que um mal nunca vem só. Ainda não vi como está o tempo em Palma, mas lá tenho roupa para o que der e vier.

A ver se chego, janto e me deito, sem chuva entre cada uma destas etapas. Talvez não fosse má ideia lembrar-me de que não estou a viajar entre portos, mas sim entre terras. Ando feito terráqueo, daqueles que saem do avião e entram na sala de reuniões e de lá voltam para de onde vieram. Credo, homem, vade retro. Antes molhado do que engravatado.

Nómada em processo avançado de sedentarização? Ando a sonhar com ladrões, é o que é. Não me parece que alguém um dia me apanhe simultaneamente em cima da terra e quieto. Imóvel, só debaixo dela; ou a sair pela chaminé, que não é bem estar quieto mas anda lá perto.

É verdade: gosto de vadiar de um lado para o outro. Quando fico muito tempo no mesmo sítio sinto-me como se ele me pusesse na rua. São os lugares que me expelem; ou repelem, se preferirem. Não sei. Todavia algo me diz que por estas bandas vou ficar. Chego daqui a uma hora. Só preciso é de um carro, é mais agradável poder sair e parar quando quero. Não sei.

A quantidade de coisas de que um homem precisa quando pára é aterradora: casa,  carro, fogão, frigorífico, roupa para a chuva e para o bom tempo, uma mulher...

Quando se anda de um lado para o outro também se precisa de uma mulher, mas é diferente. Isto é: são diferentes. A mulher e a necessidade. Não sei. É uma hipótese a analisar.

Por exemplo, hoje estava a fazer uma lista de objecções ao suicídio. Os filhos, o livro,  os projectos em curso e os que hão-de vir... depois apercebi-me de que uma vida que me deu a possibilidade de viver com S. não merece ser abandonada. Não pode sequer ser abandonada.

Bom, estou provavelmente a divagar, preso no sonho do chauffeur da camionete,  o homem esqueceu-se de tomar Paracetemol e levo aqui uma dor de cabeça que só vista. Além disso estou com saudades de Palma, é inútil negá-lo. E do mar também. No meio disto tudo só não tenho saudades do Sena porque nunca o subi. Vai ser a primeira vez. Chegar a Paris de barco faz-me lembrar quando fui contratado para levar um barco viking da Dinamarca ate Nova Iorque. O projecto acabou por ser cancelado, aquilo era uma associação e zangaram-se todos uns com os outros. Chegar a Nova Iorque num drakkar não é a mesma coisa do que chegar a Paris numa lancha a motor? ¡Qué vaya! Não se pode estar sempre a comparar tudo: viagens, mulheres, barcos... É tudo bom, todas, todos, cada um individualmente, em conjunto. Vou subir o Sena. Chega.

Hoje tive a confirmação de que o livro vai sair, finalmente. Devia estar mais feliz do que estou, eu sei, mas isto é só uma falsa impressão. A verdade é que estou feliz, muito. Penso no caminho todo que me trouxe aqui. De manhã estava a folhear um livro qualquer, tão qualquer que não me apetece sequer lembrar-me de qual era. Estava muito bem escrito, mas era desinteressante como um dia de chuva. Ocorreu-me que talvez fosse um livro órfão de vontade, um livro que não pediu para ser escrito. Pediu, não. Exigiu. A boa literatura nasce dos livros e vai para o autor, não o contrário. Não recordo quem disse que um livro só é bom quando teve de ser escrito, quando apontou uma pistola à cabeça do autor e lhe disse "escreve-me ou morres". Perguntem ao Hemingway, ao London, ao Conrad, ao Beckett. O livro está-se nas tintas para o estilo do autor, para a escolha lexical ou para seja o que for que não seja ele, livro.

Ao Don Vivo faltarão todas as qualidades menos essa: conseguiu vergar-me, ganhou esta roleta russa, obrigou-me a fazê-lo. (Com uma aliada de peso, uma senhora chamada JMV). Estou-lhes grato (ao DV, à J. e ao editor).

Falta um quarto de hora para chegar. Falta uma vida, que a morte já temos.

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