3.8.20

Gazeta Rural IV - Mértola


Tinha planeado continuar com artigos sobre Palma. Queria falar sobre as ruas e praças daquela cidade, sobre as praias e campos da ilha de Maiorca. Sobre, no fundo, aquilo de que naquela ilha me apropriei e transformei em território meu, território vivido. Porém, estou em Mértola, outro dos «meus» territórios, outra das minhas vidas, dos meus amores geográficos e resolvi fazer jus ao título desta coluna: Diário de Bordos – isto é, dos ziguezagues, das deambulações – e é de Mértola que falarei hoje. 
Acontece-me por vezes, quando tenho um carro à mão (o que não é frequente), sentar-me ao volante e deixar-me levar. Isto é quase literal: o carro vai para onde quer e eu limito-me a conduzi-lo. Claro que os trajectos variam um bocadinho em função do veículo, mas é óbvio que eles sabem escolher as estradas que mais lhes convêm. Estando à vontade em todo o tipo de estradas, desde as de terra batida às mais rápidas, nunca lhes imponho uma preferência. O automóvel decide (ou mais frequentemente vai decidindo), eu vou conduzindo e entendemo-nos às mil maravilhas. Um dia, uma dessas não-decisões trouxe-me a Mértola. Eu vinha de Cascais, cheguei cansado e decidi ficar a dormir aqui e regressar à base no dia seguinte. Era dia de Festival Islâmico, a vila estava cheia de vida, de encantos, de cheiros e ruídos, à beira rio havia (ainda há) uma pensão chamada Beira-Rio. Entrei, pedi um quarto, se faz favor, a senhora da recepção abriu muito os olhos e perguntou-me se eu tinha reserva, disse que não, ela explicou-me com santa paciência que não havia um quarto livre num raio de cinquenta quilómetros, insisti dizendo-lhe que não me importava, no fundo só queria um quarto, ela disse-me que não tinha... Abrevio, não quero maçar os simpáticos leitores: consegui um quarto e apaixonei-me por Mértola, quase simultaneamente. Acabei por ficar duas noites e voltei muitas mais vezes, desta vez menos ingenuamente: sabia para onde ia e o que me esperava. Vim frequentemente de camioneta, vim de carro alugado, de boleia, vim sozinho e acompanhado. Ficava na Pensão Beira-Rio até aparecer o Hotel-Museu, que é ao lado; mais tarde acabei por alugar uma casa pequena, tradicional, no centro da vila. Não é com palavras que se demonstra o amor, é com feitos. 
Falei há pouco dos ruídos e dos cheiros do Festival Islâmico, um marco a não perder no calendário da vila (é em Maio dos anos ímpares) mas o que mais me atrai em Mértola é o silêncio. O silêncio aqui é azul e branco, como as barras de sabão de Marselha e tal como elas deve ser cortado à faca, um bocadinho como um explorador corta lianas na floresta para progredir. Andar numa destas ruas à noite é empurrar continuamente uma parede de silêncio. É de tal forma que uma vez em casa raramente ponho música. Seria tão adequado como fazer um striptease numa igreja ou pedir um leite com chocolate num bar. (Às vezes fujo a esta regra e escuto Hildegarde Von Bingen, porque não há melhor forma de exprimir o espanto e a gratidão. É um espanto telúrico, vem da terra e atravessa-me como as notas dos cânticos da abadessa atravessaram os séculos.) Os árabes diziam de Mértola que era o último porto de Mediterrâneo e nessas coisas eles raramente se enganam. É aqui que o Mediterrâneo começa; ou termina e isto pode ser confirmado de várias maneiras, incluindo aquela teoria segundo a qual o Mediterrâneo acaba onde acabam as oliveiras. Os arredores de Mértola são lindos e incluem as Minas de S. Domingos, o porto do Pomarão – por onde, desde os romanos, se escoava o minério das Minas de S. Domingos –, o célebre Pulo do Lobo e uma série de lugares nos quais sabe bem perdermo-nos, deixarmo-nos conduzir pelo automóvel. O centro da vida social, intelectual e cultural da vila é o Café Guadiana (onde agora escrevo); ao lado, no mercado fica a cafetaria Bom D+, que faz as melhores caipirinhas que bebi desde que deixei terras brasileiras (e tem de caminho uma vista maravilhosa sobre o rio e as muralhas). É praticamente impossível comer mal em Mértola. Todos os restaurantes são bons: o Esquina, o Muralha, o Salvador, o Migas... Todos. Mas um, tal como no livro, é mais igual do que os outros. Chama-se Tamuje e eu desafio qualquer ateu a lá ir comer. Ainda a refeição irá a meio e o incréu será acometido pela dúvida. No fim, estará convencido: Deus existe, chama-se Ana Isabel e cozinha ali. Já me aconteceu chorar de comoção com um coelho em vinho tinto e cada vez que lá vou fico à beira das lágrimas. Aquela senhora tem lugar garantido no céu. Só espero é que seja daqui a muito tempo. Outra das provas da existência de Deus é-nos dada pelo vinho Balanches. Vinhos, no plural, o branco e o tinto, feitos nas redondezas. A combinação Tamuje / Balanches é irrefutável e eu penso que todos a deviam experimentar pelo menos uma vez na vida. (E o medronho, Luís? Não falas do medronho? Claro que falo. Chama-se Cerca da Estrada e é feito em Almodôvar, ali logo ao lado. Mas há tantos mais...) Para além de inúmeros restaurantes excelentes, de ruas e casas lindas, de uma igreja que já foi mesquita e hoje é, aparentemente, o único exemplar de arquitectura islâmica remanescente no nosso país, de um castelo cuja visita vale cada passo até ao topo da colina, Mértola tem uma inacreditável quantidade de museus. São tantos que é conhecida por vila-museu. 
Mértola é um produto de luxo e como tal deve ser visitada e degustada. Com respeito, veneração, espanto e gratidão, muita gratidão: visitá-la é um privilégio e poder lá ir e chamar-lhe «minha» uma incomensurável sorte. 

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