22.10.20

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 22-10-2020

Tenho encontro com a G. nos Bains des Pâquis, onde no Verão de antigamente as miúdas vinham mostrar as mamas e os maricas o peito. Não sei como está no Verão de agora. Hoje, Outono, o lugar está medonho de melancólico, tão medonho e tão triste que não consigo impedir-me de gostar disto, desta luz que não sei bem se é luz se claridade, deste silêncio sepulcral, destas janelas que estupidamente cortam a vista para fora com um desenho de vagas e gaivotas a traços brancos - "Se fossem de cor seria pior", penso. Quando trabalhava no Intermaritime vinha muitas vezes aqui, não só por causa das mamas das miúdas mas também porque parecia o estrangeiro. G. (que entretanto chegou) diz-me que o lugar lhe lembra Cabanas de Tavira, coisa que só demonstra o poder mnésico dos opostos. Diametral, visceral, ontologicamente opostos. Mas não há dúvida de que os Bains têm qualquer coisa de fora do tempo, fora do espaço. Há uns anos queriam demoli-los e foram salvos por um iniciativa popular. A democracia directa tem inegáveis vantagens. 
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Chove outra vez. Vai chover o resto da semana, vai chover o resto da vida. Infelizmente não é desta chuva que preciso, é da outra.

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Um vírgula três litros de vinho, dois pratos de carne seca dos Grisons e um prato de queijo mais tarde (as comidas foram divididas por um vírgula um, G. a comer parece uma daquelas máquinas debulhadoras nas planícies americanas) volto para casa, à sombra da mesma chuva miudinha com que fui para lá. Há muito que não passo tanto tempo em Genebra e saio pouco: o passeio de hoje foi uma visita ao passado, o reencontro com o prazer de andar à chuva quando ela é comedida, suíça - e uma interrogação: quantas cidades há no mundo nas quais me reencontro? Comigo, com a arquitectura, com o passado em carne viva? Lisboa, Genebra, Palma; uma parte da cidade do Panamá, três ou quatro arrondissements em Paris, idem em Londres; S. Luís do Maranhão, a agora Maputo, Cape Town, Bujumbura, Lubumbashi... Caracas, Rio estão demasiado longe, não reconheceria nada. Isto não é um vida, é um caleidoscópio partido e espalhado pelo chão. Não admira que passe a vida a olhar para trás, a reconstituir isto tudo.

Como se fosse passível de reconstituição.

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 A Suíça prepara-se para um «semi-confinamento». Sabê-lo-emos de hoje a oito. Isto é desesperante. O que varia são os graus de loucura, não a loucura em si mesma. Arrependo-me de não ter ido para a Suécia há quarenta anos, quando uma miúda loira e bonita (e americana) me desafiou. «És o homem mais extraordinário que até hoje conheci», dizia-me numa carta que reencontrei - tantos reencontros - há pouco tempo. 

Não acreditei e não fui (além de que era ainda mais frio do que a cidade onde então estava, que já o era bastante). Mais extraordinário ou mais cobardolas? Talvez simplesmente mais estúpido, mas ela confundia tudo e eu não percebia nada.

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