21.1.21

Diário de Bordos - Lisboa, 21-01-2021

À minha direita, o negro do mar e a rebentação das vagas em fiadas paralelas, sucedendo-se como fileiras de dentes, brilhantes, brancos e convidativos. À esquerda, o alcatrão da outra faixa da Marginal. Do Estoril até Algés é a bicicleta que me puxa. De Algés a casa, sou eu que a puxo. Ou puxo por mim, diria o meu Pai. «A bicicleta é o único meio de transporte em que a besta se puxa a si própria.» Que sorte tem a besta! A noite espicaça, o vento está pela popa, a estrada quase deserta. Em Caxias uma senhora abranda ao meu lado para me avisar de que sou pouco visível. Ponho o colete e continuo leve, direito na minha Coluer, as pernas a um ritmo que elas mesmas escolheram. A noite estava - e foi - demasiado boa para me enfiar num comboio. 

O medo é um abafador. Abafa-vos a vida, berlinde a berlinde. Vejo mal, a surriada que o vento me traz põe-me os óculos como se estivesse no mar; nada disso cobre o prazer que é rolar por esta Marginal quase deserta, por esta noite que oscila entre o negrume completo e o verde brilhante dos semáforos, nesta bicicleta silenciosa, confortável como uma poltrona. Sinto-me como se estivesse num trenó. A bicicleta avança sozinha, os carros passam à vontade na faixa da esquerda (alguns depressa demais, mas quem nunca andou depressa demais numa Marginal deserta que atire a primeira pedra). De vez em quando paro para limpar os óculos, para memorizar uma ou outra ideia mas logo de seguida a burra puxa por mim, chama-me e as paragens acabam por ser breves, instantes tão fugazes como os que o chuvisco leva a encher-me de novo as lentes de uma cortina estrelada, como aqueles filtros das fotografias que transformavam cada luz numa estrela. 

Fui ao Estoril fazer o teste PCR, que desta vez correu bem - suponho que por cansaço dos intervenientes todos, eles e eu. Comecei por entrar com a máscara bem sobre o nariz e só a abaixar lá dentro; apenas uma vez um funcionário me chamou a atenção, mas de uma forma delicada, quase ténue. Na sala, o diálogo com a senhora foi cordial. Saí e fui a casa do A. G., onde lanchámos, jantámos, bebemos duas garrafas de vinho para lá do muito bom - Castelo d'Alba um e Quinta da Comenda o outro, creio mas não garanto. Este do Alentejo aquele do Douro. Vinhos à portuguesa, adstringentes, encorpados (mais o Douro do que o outro). Quando parou de chover, vim-me embora. Até à estação não há que pedalar nem um minuto, é sempre a descer. Lá em baixo, decidi continuar até S. João, depois até Oeiras, e aí soube que estava decidido: viria até casa. Por causa do mar, dos dentes brancos que me sorriam, da surriada que me embaciava os óculos, porque o medo é um abafador, porque respirar é preciso, porque ir numa bicicleta que desliza silenciosa na pele negra do alcatrão é como voar montado nas asas de um anjo, porque uma bela amizade deve ser celebrada.

Não sei como se chama o produto químico que o movimento regular das pernas envia para o cérebro, mas sei como se chama o resultado: êxtase.

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