22.1.21

Gaëlle

 Lisboa, 29/11/2020

 

Querida Vanessa,

A carta vai atrasada, eu sei. Desculpa. Isto tem andado complicado, por estas bandas. Poucas vontades e sem elas não há memória que me valha. Tenho aproveitado estes dias para me lembrar da Gaëlle   , um miúda pequenina, loira, francesa de olhos azuis que conheci há tempos em Dunquerque, a cidade mais feia de França e a mais simpática de todas. Prova – como se fosse preciso provar – de que quem vê ruas e prédios não vê corações. Seduzi-la foi um processo longo e laborioso. Ela acabara de sair de um casamento horrível, com um alcoólico que lhe deixara um filho e um monte de dívidas e precisei de tempo e palavras em grande quantidade para, finalmente, um dia na praia lhe deitar a mão. Estávamos na Primavera, não havia ainda muita gente e eu, não sendo grande fã de sexo na praia – não gosto de areia em lado nenhum e muito menos nesses sítios – lá me abalancei.

A primeira vez nunca é a melhor. Isso é mito de meninas «livres» e meninos cheios de hormonas. Aquela vez na praia não fugiu à regra: foi rápido, com poucos preliminares e apenas chegou para nos dizer – aos dois – que devíamos insistir. A verdade é que o monte de palavras e tempo que gastara a seduzi-la me seduziram também a mim. Acontece muitas vezes, não é? Quantas vezes seduzir alguém serve simplesmente para nos seduzirmos a nós próprios?

Gaëlle morava no quinto andar de um prédio que ficava ali mesmo ao lado e foi lá que continuámos. Era muito pequenina mas forte e quando se vinha dizia-me «tu fodes-me como um deus» e tinha aquilo que me parecia uma descarga eléctrica. Toda ela tremia, enquanto ia repetindo «...como um deus. Como um deus» Eu acreditava, claro. Qual o homem que não acredita? Ainda por cima, nessa altura sentia-me verdadeiramente um deus, era um deus. Foder como um parecia-me a coisa mais natural do mundo.

Penso nela muitas vezes, ainda. Gostaria de saber se encontrou um homem que a merecesse. Gaëlle tinha três empregos, um dos quais consistia em vender livros pró-independência a grupos independentistas. Tinha para isso uma carrinha Citroën, daquelas de chapa ondulada que se vêem invariavelmente nos filmes franceses. Com ela, percorríamos a Flandres francesa, a Normandia – como de costume, eu tinha um trabalho que me permitia intermitências. Normalmente era eu quem guiava. Volta e meia ela pedia-me «Pára, por favor.» Eu parava no primeiro sítio possível, ela saltava para cima de mim, punha-me a pila dentro dela, já molhada e pronta. Imagino no que teria vindo a pensar, para estar já naquele ponto. Chegava rapidamente ao orgasmo e dava-me gozo fazê-la vir-se duas ou três vezes, duas ou três descargas, uma quantidade infinita de «oh meu Deus» e «como um deus». Depois desencaixava-se de mim, sentava-se no seu lugar e dizia-me »Desculpa, estava mesmo a precisar.» Outras vezes, dizia-me: «Esta é só para ti.» e fazia-me um bico ali à beira da estrada, aquele tufão loiro na minha cintura a mexer-se em todos os sentidos. Ela sendo pequenina, eu arranjava forma de não «ser só para mim» e enfiava-lhe um dedo na vagina, outro no cu até eles quase se tocarem lá dentro.

Nunca fui muito de acreditar nessas coisas do «vir-se ao mesmo tempo» - prefiro dar a prioridade às senhoras, quando gosto delas; ou não pensar muito nisso quando me são indiferentes – mas é verdade que por vezes havia qualquer coisa de mágico naqueles orgasmos em que Gaëlle    se molhava de cima a baixo e vibrava como um mastro numa tempestade enquanto eu esvaziava o meu nela.

Por causa do filho – teria meia dúzia de meses, talvez um ano, não me recordo – habituara-se a não gritar durante o sexo e toda aquela energia saía-lhe pelo corpo perfeito, musculado, seco e lindo. Um dia, fomos com uns amigos dela beber umas cervejas a um bar, no campo. Não sei se conheces a Flandres: uma região muito bonita, entrecortada por inúmeros canais, com antigos moinhos reconvertidos em bares. A bebida ali é a cerveja, não o vinho. Estaríamos talvez três ou quatro casais. A certa altura, sinto uma mão nas coxas. Era uma das raparigas, amiga dela, que me dizia «A Gaëlle diz maravilhas de ti. Gostava de experimentar. Posso?»  Disse-lhe que sim – Gaëlle piscara-me o olho pouco antes e agora percebia porquê. Estava entretido com a rapariga – uma loira, claro, as flamengas são do norte, cabelos de cerveja e olhos de mar – quando sinto uma pancada violenta no ombro. Era o homem dela. Não estava nada contente com aquilo e arrancou-ma dos braços, pegou nela e foram-se embora. A festa acabou ali, aquilo estragou um pouco o ambiente, como podes imaginar. No caminho Gaëlle disse-me «Eu bem tentei aguentá-lo, mas não consegui. Anda, faz-me a mim o que ela queria que lhe fizesses». Parou a carrinha, mas desta vez fomos para trás, para o meio dos livros. É tão bom, um corpo levezinho em cima de ti, não é? Deve ser daí que vem aquela expressão portuguesa da mulher e da sardinha. O prazer concentra-se todo na ponta da pila e nos olhos. A estúpida mania das conas  rapadas ainda não tinha chegado. Ver aquele tufo de pelos entre o amarelo e o castanho claro mexer-se em mim parecia dar corpo ao gozo, uma sinestesia com sensações em vez de vogais. «Era isto que querias fazer com a... (como lembrar-me do nome da rapariga?) Era? Diz se eu não sou melhor? Diz!» Era. Acabei por foder a outra, um dia em que nos encontrámos num bar os três – a Gaëlle   , ela e eu. O homem ciumento tinha ficado em casa, ou ela tinha-lhe passado um bilhete de desembarque, não sei. Comi-a na rua, no recesso de um portão e não, não foi bom. Quando acabámos, disse-lhe «temos de nos ver numa cama, isto é sítio para quem já se conhece» e voltámos para dentro, onde Gaëlle    me esperava com uma cerveja e um sorriso trocista. «A primeira vez nunca é a melhor», disse para a amiga. Que visivelmente não acreditou, porque nunca mais a vi.

Porque penso em Gaëlle agora, passados estes anos todos? Porque me lembro de quando ela me pedia para pôr o concerto de Colónia quando queria fazer amor – isto é, todos os dias, todas as horas? Porque me lembro daqueles seios pequenos, rosados, onde se me entaramelavam os dedos, a língua, o nariz, os olhos, às vezes a pila – pareciam um foguetão a caminho da Lua, quando cresciam de repente...

Eu sei porquê: é por causa da Gaëlle  e de todas as Gaëlle que me atravessaram os dias e as noites, que magoei sem querer – e às vezes querendo, mas sempre injustamente – que hoje sou quem sou. E não, Gaëlle, eu não fodia como um deus. Nós fodíamos como deuses. Há coisas que só se fazem a dois e ir para o céu é uma delas.

Beijos do


Luís 



(Lisboa, 29/11/2020)

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