24.6.21

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 24-06-2021

Fui almoçar ao mini-Restaurante Casa Julio, que de mini só tem os preços e a designação (e nem sequer aparece sempre). O resto é maxi: a qualidade, as doses, a eficácia e simpatia das pessoas. Mal entrei a empregada mais antiga diz-me «até que enfim! Há muito tempo que não te via! Por onde tens andado?» como se eu fosse o marido dela e tivesse chegado a casa depois de uma semana de farra. Acho que vou deixar este dilema da pertença versus nomadismo no mesmo sítio onde tenho vontade de pôr o debate sobre a Covid (pelo menos com os amigos): no caixote de lixo da história. Há coisas que simplesmente não têm resolução, pelo menos dependente da nossa acção sobre elas. Um dia saber-se-á quem tem razão, tal como um dia saberei se a minha sedentarização é um facto ou um voto piedoso. Pena é esta merda da Covid ser tão invasiva, tão presente, é impossível escapar-lhe. Ver estes desgraçados trabalhar que nem forçados de máscara magoa-me e agride-me (estou na Chinchilla, o Angél e o Andrés correm como se estivessem a fazer os cem metros barreiras com as travessas na mão e o açaimo na cara, porque são obrigados).

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Depois das lulas da casa, comi uma tapita de Gamoneo, o queijo dos queijos (pelo menos dos queijos espanhóis e para mim). É um queijo asturiano feito e comercializado em condições esquisitas. Vejam no Google, se for igual ao meu é instrutivo. A primeira vez que o comi foi durante o primeiro confinamento; o de hoje era mais civilizado. Acompanho-o diacronicamente com um Jerez, um café e um tiramisú, tudo numa desordem caótica, a granel, como quando enfiávamos açúcar ou cereais nos porões do M/V RIO CUANZA, onde pela primeira vez experimentei as delícias do tramping: ir para onde há trabalho (carga, no caso do navio). O tiramisú é bom demais, a rapariga cozinha como uma deusa, o Angél hoje está chato e pega-se com todos - são só mais dois, a Dalila (?) e o Andrés, um moço impecável e ginasta de vinte e quatro anos (sei porque fez anos há pouco tempo e mo disse). Pedi-lhes uma mesa ao pé de uma tomada, sentaram-me num canto perto da janela. Estou em casa, tive de lhes pedir para me tirarem o tiramisú da frente, porque se continuasse até o pote ia. O seco Jerez combina bem com o doce do doce. É uma bebida injustamente esquecida pelo rapazinho. Tenho de rever essa situação. Quando tiver uma casa falamos, respondo. Estes diálogos internos não são bem diálogos, são mais como as fitas do telex, ininterruptos, sequências de palavras sem solução entre elas e de vez em quando vêm outras palavras, como quando o Angél me diz que está a caminhar para a velhice e eu lhe respondo que tem um longo caminho pela proa. São adoráveis e tenho de repensar a minha opinião sobre os maiorquinos, talvez apoiando-me na experiência que tive com os panamianos. O Angél não pára de pegar-se com os outros e eu pergunto-me se devo beber mais um Jerez. A pergunta é retórica, claro. Toda a plateia sabe a resposta. 

Todas estas coisas se misturam, articulam, encaixam, engrenam. Deve ser a isto que se chama harmonia, não?

Adenda: o Andrés é colombiano, de Medellín. Veio para Espanha muito jovem. Já passou dezasseis anos na Galicia.  

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Entro pouco a pouco nas delícias do amor. Isto é, da relativa novidade de amar e ser amado - é sempre a primeira vez, não é? O único efeito da idade é que agora se entra mais devagar. Talvez porque se saiba que não se voltará a sair. A minha última namorada porque não haverá outra a seguir, desta vez, não é uma frase bonita. É uma verdade e, muito mais do que isso, uma vontade. Parece a chegada a um porto depois de uma viagem difícil.

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Penso na ambivalência dos marinheiros (não há nada que não abarque: somos arrogantes e humildes, valentes e cobardes, individualistas e vivemos com os outros em latas de sardinha flutuantes, sabemos fazer tudo e fazemos tudo mal, adoramos a solidão quando estamos acompanhados e a companhia quando estamos sozinhos, vivemos entre o porto de que largámos e aquele a que vamos chegar, temos dinheiro quando não precisamos dele e mal precisamos deixamos de o ter porque ele se esvai sozinho, sonhamos com vento nos dias de calma e com a calma nos dias de temporal. Por aí fora) e vejo que essa é mais uma: por muito que se precise de estar no mar, é num porto que te sentes acolhido. R., minha R., conhecias a tua vocação de porto? Em inglês existe um termo, haven, diferente de harbour. Significa refúgio, diz-me um tradutor qualquer da net. Porto de abrigo? Não sei. Sei que preciso de mar e de ti em doses iguais e que ser marinheiro é ser ambivalente, arquivalente, omnivalente, panvalente: não há valência que nos falhe.

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Vejo-os correr para trás e para a frente e lembro-me das noites frenéticas do Marchand. Daí a memória descola para outras coisas, como quando os pianistas percorrem as teclas todas seguidas. Páro-a no meio. Estou farto da memória. É como a esperança, uma droga. Sei que os amnésicos têm uma vida horrível, mas se conhecessem a dos hipermnésicos relativizariam. (Isto dito por um gajo que se não tivesse pescoço deixaria a cabeça em todo o lado tem outro sabor, não tem? Tem)

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