4.6.22

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 04-06-2022

Qualquer pessoa com mais de dezoito anos sabe que o mundo é injusto; aos vinte aprende a aceitar esse facto singelo e irremediável. A vida é injusta, ponto. Saber viver limita-se a tentar estar no bom lado da injustiça, ou pelo menos num dos pontos do círculo em que se sofra pouco - a roda não está dividida em duas metades; a pizza do real tem muitas fatias. De tamanho desigual, é certo, mas quem as cortou fê-lo ao sabor do acaso e não segundo um plano premeditado. Nada a fazer senão tentar não apanhar a mais pequena de todas ou - ainda menos - aquelas em que te pedem para colaborares na farinha, no tomate e no queijo.

Uma das injustiças deste mundo é a Bottega Bolognese, sita no Mercat de l'Olivar (não fazem pizze, aviso) não poder servir comida a quem quer comer sentado. Regras do mercado: aquilo não é um bar nem um restaurante nem um snack nem nada que se pareça. É simplesmente um stand onde se fazem as melhores pastas do mundo e pouco mais. Quem quiser comer ali come de pé, «como os cavalos» (aspas porque cito o meu Pai).

(Outra injustiça é o brutal aumento de preço das ditas pastas, mas isso fica para depois.)

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La Cuadra del Mano é uma máquina de imprimir dinheiro que tem a forma de um restaurante (uma churrascaria, para ser mais exacto). Apresso-me a esclarecer os meus leitores do Bloco de Esquerda - se tiver alguns - que raramente tenho visto máquinas de imprimir dinheiro tão justo, tão merecido como esta. É uma empresa familiar. Helena (a mãe) e Luis e Dany (os filhos) dirigem a coisa, com a ajuda de Karina e uma outra jovem com cara de tutsi cujo nome desconheço. Penso que já aqui falei muitas vezes deste restaurante. Não sei. Sei apenas que para mim deixou há muito de ser um restaurante: é uma casa, uma das minhas muitas casas em Palma.

A carne não é a melhor que já comi na vida - a de Lubumbashi não tem rivais - mas é grelhada pelo Luis com amor, com ternura, com saber, com mão de mestre; e servida pelo Dani ou pela Karina com amizade, com ternura (a ternura é importante, mesmo quando se está soterrado em trabalho). O Luis grelha, o Dani serve e a Helena gere - isto dá para um artigo sobre empresas familiares, não dá?

Já aqui contei, disto lembro-me, que a última vez que lá fui e pedi uma dose pequena o Dany me perguntou:
- Onde está o Luís que eu conheci?

Hoje limitou-se a dizer que sim, realmente estou mais magro. Respondo-lhe que como menos mas bebo o mesmo, ele sorri-me aquele sorriso cúmplice e rápido de quem está muito ocupado, eu janto meia dose (feita à medida, não está na carta) de picanha. Isto de beber o mesmo é uma pequena mentira, aceitável dadas as circunstâncias. Não bebo o mesmo. Bebo menos, muito menos. Pouco menos, às vezes. Mas sempre menos. O sorriso de Dani é de amigo - amigo de balcão, mas amigo. Aquilo está sempre cheio a abarrotar, eu felicito-me silenciosamente por não precisar de reservar - ela encontra sempre um lugar ao balcão para mim - e penso nas minhas casas. Em Lisboa tenho uma, agora, finalmente; em Palma tenho muitas; em Genebra tenho um sofá e uma família. No mundo tenho sorte.

A sorte é uma casa que leva muito tempo a construir. O mundo é uma sorte que já está quando a ele chegamos.

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Decididamente não consigo compreender os vegetarianos. Esta carne está sublime. O que não faria este homem da carne do leste do Zaire? Esta vem «de onde lhe parece boa».

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De passagem. Estou de passagem. Todos estamos. O que muda é por onde passamos, nada mais. Isso é pouco, bem pouco.

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Os sistemas eléctricos das embarcações mudaram de tal forma que hoje olhei para o interruptor da bomba da retrete e limitei-me a fechar os olhos (ou seja: a tampa do quadro). Não percebo nada daquilo. Pergunto-me se a mesma incompreensão não se aplicará ao resto da realidade? É possível. 

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A minha relação com Palma continua a ser a de um paisano com a sua comunidade: vou jantar à Helena porque o Toni está fechado, bebo tinto de verano no Giuseppe, depois de jantar vou à Cantina porque o Jaume está fechado (que raio se passa nesta cidade? Está a abarrotar de turistas).

É um prazer inesperado (isto é um understatement) vê-la assim, carregada como as tetas de uma vaca que não foi ordenhada.

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Dormir no P. é outro prazer inesperado. Como será, navegar aquilo? Recuo quarenta anos no tempo. Ainda não parei de dar cabeçadas em tudo quanto é sítio. É o barco a entrar, dizem os franceses. E os anos a sair, respondo eu.

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