15.9.22

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 15-09-2022

O Ca la Seu fechou, o Santa Fé idem, a Ca na Chinchilla também. Ontem a Núria deu-me a entender que talvez fechem o Lo Divino. O Moltabarra - onde não entrava há anos - continua igual: o mesmo cenário, a mesma fauna (agradável) e a mesma merda de comida. Foi isso que me fez deixar de cá vir, mas apercebo-me agora que vou voltar a frequentar o sítio, sem comer. Ou então - não é impossível - talvez encontre qualquer coisa acima do medíocre. As bravas e as albóndigas que agora  como não estão,. Safam-se o espaço e os meus co-clientes, todos mais bonitos do que eu, todos engajados em animadas conversas. Ainda é cedo, pouco passa das oito da noite. Daqui a pouco estará cheio e insuportável, tanto mais que hoje é a Nit des Arts, a noite das artes, noite de festa para galerias e bares.

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Comprei mais uns calções na Napapijri. Emagrecer é bom mas é caro, mesmo com os saldos (se estivessem ao preço normal nem os veria). Não consigo deixar de pensar no meu Pai mai-los seus três armários de roupa: gordo, magro e intermédio. Não tenho armários de roupa, mas tenho calções Napapijri para as três situações.

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Um dos sintomas da idade - a idade é uma doença? - é esta dificuldade crescente em lidar com a incerteza. Não sei que fazer: reaprender a ser jovem e a ser capaz de viver dia-a-dia ou aprender a ser velho e começar a medir o tempo em semanas?

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Devia ter ligado à U., ela terá de certeza boas ideias para hoje. Agora é tarde. (Isto é desculpa atrás de desculpa. Se calhar a velhice não passa de um revelador deste teu de sempre feitio, um catalizador. Só sabes ser seduzido, não sabes seduzir. Se calhar. Ainda por cima a rapariga já te explicou que dezasseis anos de diferença de idade é demasiado para ela, leider. Este leider foi acrescentado por mim, mas juro que não está desafinado. Está perfeitamente no tom com que nos rimos os dois sobre isso. Tiens, às vezes encontrava-a aqui. Mudou para o campo, anda a organizar passeios campestres, educativos, flores comestíveis e esse género de coisas. Na volta vamos a ver e está vegetariana, ou vegan, ou insectívora. Não sei, nunca mais a vi. Espero que tenha arranjado um namorado da idade dela.)

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Para quem não se interessa pela vida dos outros falo bastante da minha. Aliás: só falo da minha. Solipsismo em acção. Felizmente tenho uma vida variada, se não seria de uma monotonia insuportável. 

(Provavelmente já é insuportável, mas passemos. Isto não está para auto-críticas.)

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Hoje lavei o P., estava cheio de barro. Amanhã vai chover e vai ficar igual. As pessoas queixam-se da poluição e não fazem nada para acabar com a merda da poeira que anda por aí e foi de certeza provocada pelos homens (brancos, europeus, sexo masculino) e o seu frenesi consumista. Ou pelo capitalismo em geral. Ou pelas alterações climáticas. Sei lá: a modernidade precisa tanto de mitos como as épocas anteriores.  Não há razão nenhuma para me insurgir contra os de hoje. Amanhã haverá outros. On n'avance pas vers la vérité. On change de dogme, c'est tout. Esta frase resume a humanidade tão bem como todos os tratados de psicologia, antropologia e sociologia juntos.

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As pessoas abraçam-se. Em França o ministério da saúde aconselha o fim dos abraços, beijos, apertos de mão e outras formas de contacto físico. Este vírus provocou a maior palhaçada da história da humanidade.

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Dito com toda a simplicidade de que sou capaz: o Claudio faz os melhores gelados que comi até hoje, Santini incluidos. Depois do Moltabarra fui lá. Comi um de kefir com mirtilos porque queria uma coisa qualquer inesperada, desconhecida. Disse-me que a ideia veio da mulher dele. Abençoada senhora, abençoada humildade, abençoiada perseverança. O homem vive para aquilo, para experimentar sabores, sempre com os melhores ingredientes que encontra, sempre com uma dedicação e um brio que já não são deste tempo. Ou são cada vez menos, vá.

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A minha noite das artes vai ser passada a bordo, se Deus quiser a dormir. No caminho passo à frente do bar Dia - . A rua está cheia de turistas, claro. Aquilo é um buraco negro para a espécie, é a zona de Palma de que menos gosto. Uma senhora portuguesa diz para o marido: «Esta zona é a que prefiro para a noite». Os aviões deviam andar cheios de intelectuais melancólicos e com bom gosto, mas não andam.

Enfim: resta-me esperar que se mantenha por ali. O bar Dia já foi uma referência, um pilar da resistência, mas acabou por render-se à avalanche. A rua sempre foi insofrível, desde que a conheço. Fiquem por aí e deixem-me o Sindicat, a Calatrava, o Mercat, Monti-Sion.

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O dia acaba assim, docemente, com um rum Cacique na Cantina. Sei onde estarei até ao sábado depois deste: num charter. Depois, não sei: ou Genebra ou Porto. Uma semana é muito tempo, não é? É. «Dou graxa» ao Alberto (entre aspas porque não é graxa, é genuína admiração), peço-lhe mais um rum, despeço-me pouco a pouco do dia. Amanhã vai chover, dizem os oráculos. Pois que chova. Sábado não terei tempo para mangueirar o bicho, mas se tiver fá-lo-ei com amor e ternura e afecto e todas aquelas parvoíces que sinto por ele.

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